quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Romance de quinta


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra

  Por William Guerra*



CAPÍTULO XXXI

         Na casa paroquial os faróis, os candeeiros e as velas nos castiçais eram aceso muito cedo. Mercês realizava essa tarefa fazendo a capela de uma música de infinita doçura, que causava tristeza mesmo. Era a Ave Maria. E o mais interessante era que a empregada do padre sabia cantar muito bem. Daí impressionar mais ainda aquela canção àquela hora da tarde.

         O padre ficava meditativo. Enquanto ela não parasse de emitir um som suave da voz melodiosa, ele nada dizia. A comovente música que parecia nascer de um mundo além, o seu pensamento parece que voava para longe, recordações antigas. Como que entrando em transe, aquele homem, que ainda usava batina, mas que mantinha uma relação amorosa com a sua empregada, dava a impressão, que nesse instante ele chorava não um choro convulso para derramar lágrimas, mas chorava por dentro. Era a alma sangrando, o coração em dúvida.

         Mas a mulher sumiu com seu cantar triste. Padre Benedito voltou sua atenção para os dois meninos, comportadamente sentados à sua frente.

         - Guerra, meu afilhado do coração. Não vou embora de Verdejante. Pelo menos agora, não!

         Este sim chorou de verdade, porque se via enxugando o rosto com as costas das mãos. Danta o olhou admirado. O Vigário riu bem fraquinho, como quem está com pena de uma pessoa triste.

         - Ora, homem! Não precisa chorar. Nenhum drama está havendo...

         Guerra fez um gesto com a cabeça, como quem diz sim, ele compreenderia um motivo capaz de sensibilizar os seres humanos. Mas naquele caso, com certeza, ele chorava de alegria.

         - Eu não estou chorando. Estou feliz. É que caiu um argueiro no meu olho.

         Desculpa inteligente.

         Padre Bendito perguntou pelas lições. Se estava lendo o romance de Alexandre Duma: Carlos Magno e Os Doze Pares de França. Guerra assegurou que já ia à página 72. Mas só lia mais à noite, com ajuda de uma vela.
         - Muito bom... Danta está estudando o suficiente?

         Este respondeu que sim, embora um pouco ressabiado, ou com medo de dizer a verdade e o padre lhe passar um pito.

         - Então tudo está maravilhoso! Deus nos ajude para que, um dia, a gente se reúna aqui e comemore a vitória dos dois!

         Seria inútil predizer qualquer coisa. Guerra seguiria um caminho e Danta outro? Ou até mesmo na ocupação de um e de outro estaria unidos: carne e unha? Não sabemos, nem essa história é capaz de captar.

         Padre Benedito fez uma profecia sobre ambos:

         - Vocês hão de trabalhar em alguma coisa que os unirá mais ainda. O que ainda não sei. Mas algo me diz que farão um trabalho os dois, diariamente. O que será?

         Os meninos entreolharam-se e nada disseram. Apenas arregalaram os olhos e encolheram os ombros. Lembre-se que ambos gostaram muito da amplificadora do circo Maior de Todos: Guerra elogiava o locutor e Danta o que controlava a execução das músicas.

            Estavam assim, absortos e contagiados pela esperança que lhes dava o Vigário, quando ouviram a voz de Mercês:

         - Padre, tem um senhor aqui quer conversar com o senhor!

         Quem seria àquela hora, boca da noite, escurecendo, já? Pensou padre Benedito, gritou, indagando:

         - Quem é, é gente conhecida? Diga que já vou?

         Mercês, subindo mais alguns degraus da escada, falou:

         - Não! É um homem de palito e gravata. É a primeira vez que vejo tal sujeito.

         Deve ser mais complicação para cima desse pobre Cura de Paróquia do interior! Deus do céu! Disse de si para consigo, e desceu as escadas, acompanhado dos meninos.

         E lá estava um homem forte, paletó de linho cinza, todo amarrotado e com uma gravata escandalosamente vermelha. Cabelos em desalinho. Apresentava ter uns quarenta e poucos anos. Sorridente e, sempre assim, com a boca num sorriso, mostrava uma espécie de coroa de platina no dente mais apresentado, bem no meio da dentadura. Trazia na mão uma pasta de couro, daquelas que se entulham papéis e outros trecos convenientes à quem está sempre viajando.
         Apertando a mão do padre, foi dizendo:

         - Boa noite Vigário. Que bom, acompanhado de dois pimpolhos... São coroinhas? Eu sou José Lourenço, chamam-me Zé do Bicho.

         Os meninos não apreciaram aquela insinuação. Padre Benedito, coçando o queixo, igualmente ficou meio encabulado, mas logo devolveu o cumprimento do forasteiro:

         - Boa noite, meu senhor. Os meninos são filhos de grandes amigos meus. Este aqui é meu afilhado e este outro é filho do sacristão. Mas diga-me, ó senhor do Bicho, que quer aqui na minha casa a essa hora da noite?

         O homem notou que o padre, nem os garotos, gostaram da piada entre aspas que ele fizera, muito sutilmente. Tentou consertar:

         - Logo se vê que o senhor é amado pelas crianças... E, voltando ao Bicho, ou melhor ao meu apelido: Zé do Bicho, é porque sou banqueiro do jogo do bicho. Sou paraibano e venho aqui vê se instalo uma banca para os apreciadores dessa modalidade de adivinhação e ganhar dinheiro!

         Com isso o seu sorriso quase se transforma em gargalhada. Aindaestavam todos em pé. O padre, magoado com a investida inescrupulosa do desconhecido, sequer mandara sentar. Os últimos vestígios de claridade do sol foram morrendo lentamente. Ouviu-se os seis badalar do sino. O homem, não se sabe se somente por estar na presença do padre, para impressionar, ou se era mesmo muito religioso, ajoelhou-se fez o sinal da cruz e, mãos postas, cabeça baixa, somente quando o som do sino acabasse ele se levantar.

         Causou impacto nos garotos aquele ato, porém, o padre ficou meio cismado.

         - Muito bem. Senhor Zé do Bicho. Mas que tem a ver eu com a sua banca de bancar o jogo do bicho?

         O homem disse de chofre:

         - Nada, senhor Vigário. Absolutamente, nada! É que quando eu chego em qualquer cidade, a primeira pessoa que faço visita é o Cura da Paróquia, assim penso que a sorte me será favorável.

         Padre Benedito, intrigado mais ainda, respondeu:

         - Pois que seja. A sorte dos meus paroquianos é que se fará necessária, o senhor vem lhes tirar as migalhas que sobram para o sustento dos mesmos.

         O Zé do Bicho, tirando do bolso um lenço, não se deu por vencido naquela contenda quase amigável:

         - É. Nós somos iguais, senhor Vigário. O senhor lhes deu um Alambique para que tomem cachaça e haja muita desavença na cidade, pois a cachaça é uma pesada droga; eu apenas lhes dou momentos de diversão!
         Ao o padre ficou furioso. Guerra e Danta também. Aquilo era um insulto. Padre Benedito rebateu dizendo:

         - Ora meu estranho senhor! O meu Alambique dá emprego  e renda ao município. Enquanto o seu jogo do bicho traz jogatina, algo que até é proibido! Por obséquio, queira se retirar da minha casa. E se depender de mim, o senhor não fará nenhum minuto de ilusionismo aos meus fiéis! Vou conversar com o delegado e o prefeito sobre isso!

         O homem, suando e aperriado, vendo que não foi feliz em comprar uma briga com o Vigário, falou quase arrependido:

         - Desculpe padre, não disse por mal. Até antes de vir para cá, havia me comunicado com o delegado e o prefeito sobre a minha pretensão. O povo daqui, mesmo sem Banqueiro do jogo do bicho, faz sua fezinha com um cambista que vem de bicicleta de outro centro aqui vizinho, e tem um dia de atraso nos resultado. Agora terão um Banco do jogo do bicho na sua cidade.

         O Vigário foi andando, enquanto homem saía devagar da sala principal da casa paroquial, e lhe falava em voz alta:

         - Pois que vá cantar de galo noutra freguesia! O senhor não deveria ter bons modos para comigo! Agora perdeu a minha concordância! E passar bem.

         O homem ainda falou agora já na calçada:

         - Estou hospedado na pensão de Antonia Dantas. Qualquer coisa, precisando de ajuda, pode mandar me chamar que estarei ao seu inteiro dispor.

         Foi-se noite adentro, andando ligeiro com a sua bolsa, sem atinar qual a direção tomada, ficando somente a imagem daquele riso debochado que apresentava uma reluzente coroa de prata num dos dentes mais apresentado da sua dentadura.

         Mercês que ouvira toda a conversa chega e aconselha:

         - Melhor o senhor não se meter com esse aí. O povo gosta de jogar no bicho. Aposto que todos ficarão do lado desse tal de Zé do Bicho. Fica quieto, isso passa e o senhor não terá mais aborrecimentos.

         Danta e Guerra ainda não sabiam o que dizer. Nem tinha como, não entendiam nada de jogar no bicho, ainda, muito menos tinham conhecimento de que, de fato, Zé do Bicho conversara com o prefeito e o delegado. Não opinaram.

         Padre Benedito pediu uma xícara de café à empregada, pegou um charuto legítimo cubano e pôs-se a prepará-lo para traga-lo ainda com muita raiva do intrometido forasteiro. Ora onde já se viu, querer certificá-lo por causa do Alambique Malhada Vermelha?

         Virando-se para os dois meninos, pediu-lhes desculpas por não estar mais em condições de retomaram a conversa que haviam entabulado lá no sótão.
         - Hum, tem nada não. A gente entende. Mas não gostei daquele homem de paletó e grava e que não parava de achar graça!
        
         Falou Danta em nome do amigo. Despediram-se do Vigário. Guerra pediu a bênção. Foram-se, alguns amigos brincavam de esconde-esconde lá na praça, em frente à Legião de Assistência.
        
         O café lhe foi servido. O padre sentou-se numa cadeira na calçada da casa paroquial. Manoel Dantas veio para um dedo de prosa. Mastigava e rodopiava o molho de chaves. Características que, avistando-o sem que esteja sem praticá-las, pode tomar providências, algo está errado com o antigo sacristão.

         - Boa noite padre.

         Disse, entrando imediatamente para pegar uma cadeira. Sentando-se de um lado, vendo o padre soltar tufos de fumaça de maneira brusca, percebeu que algo estava fora dos trilhos.

         - Boa noite, Manoel!

         Foi a resposta do Vigário, notadamente deselegante.

         - Que está acontecendo, meu amigo?

         Indagou, parando de rodar as chaves no dedo indicador. O padre, ficando mais calmo, voltando aos poucos à sua normalidade, contou-lhe o episódio.

         Manoel Dantas disse que já sabia da chegada desse sujeito. Que os adeptos do jogo do bicho não falavam de outra coisa. Era a coqueluche do momento: o banqueiro do jogo do bicho em Verdejante. O padre ficou curioso:

         - Mas ninguém me disse nada? Por quê? Eu deveria ter sido informado. Nem o mudo de Maria Beltrão veio me fofocar sobre esse tal de Zé do Bicho? Que coisa!

         O sacristão, vendo que o padre começava a falar como faz costumeiramente, deu uma risada, não mostrava dentes por que não os tinha, mas seu riso de ancião contagiou o Vigário, que também riu.

         - Padre, talvez o mundo de Maria Beltrão esteja no rol dos que são a favor do banqueiro. Evitando ser repreendido pelo senhor, resolveu omitir uma informação que lhe iria desagradar. O mudo é sabido.

         Tudo, mas tudo mesmo, que acontece de novidade na cidade, o mudo de Maria Beltrão vem à casa paroquial participar. Às vezes o padre está na igreja, ou em qualquer parte da cidade, ele se informa e sai a cata do Vigário para contar, como que se vangloriando que fora o primeiro a informar ao Cura do tal acontecimento, seja bom ou ruim. Mas sobre Zé do Bicho, não ousou enfrentar o padre Benedito Basílio Alves.

         - É. Não vou tomar providências. Deixa o povo se divertir. Por outro lado o banqueiro paraibano não vai se dar muito bem, não. Nossa população não tem mais do que alguns trocados para fazer o seu palpite.

         Manoel Dantas concordou com o Vigário.

         - Então? Deixa isso para lá. Caso haja necessidade de alguma intervenção, que seja das autoridades: Promotor, Juiz, delegado e Prefeito. Aliás, se depender o Juiz, nada será feito, ele mora fora. O Promotor de justiça vive embriagado. O delegado, tenho certeza e aqui para nós, receará algum para licenciar a jogatina. E o prefeito, fica coma a maioria que o povo. Maneira que isso, pelo menos para mim, nem me sobe, nem desce. Eu não jogando, morreu Maria Preá.

         Padre Benedito gargalhava alto, chamando a atenção da vizinhança que já se sentavam em suas calçadas para tomar a fresca da noite.

         - Manoel Dantas, meu bom sacristão, só você mesmo para me fazer rir até ficar com dor.

         E continuava cada vez mais numa gargalhada relaxante. Manoel Dantas também ria. Recomeçando a rodopiar o molho de chaves. Chico Pinto, vizinho e amigo do padre, notando aquela algazarra entre os dois, chegou-se para perguntar por que tanto contentamento?

         Rapidamente o padre lhe relatou tudo. Ofereceu-lhe a cadeira, este disse que não precisava. Foi contagiado pelas gargalhadas dos outros dois, voltou à sua casa rindo à valer. Manoel e o padre ainda conversaram por alguns momentos. Repassaram os últimos acontecimentos como o não julgamento de Jesus; a árvore que o Guerra impediu de ser derrubada e, finalmente, a paz e a tranqüilidade que reina entre as tr~es beatas: Tilde, Cotó e Adofina, faz tempo que elas não traziam alguma queixa para o Vigário.

         - E Elísio Pinto, ainda fofoca muito, Manoel?

         Perguntou displicentemente padre Bendito. O sacristão responde:

         - Sabe senhor padre, não tem visto Elísio. Está ocupado com alguma coisa lá para as bandas do curral de João de Deus. O filho que fala e é normal, foi embora para o Pará. Ficaram os três mudos e a muda.

         O padre Benedito comentou com sentimento profundo a situação de Elísio Pinto, homem bom, mas conhecido na cidade como o mais fofoqueiro, dava a vida por uma fofoca, mas o destino fora cruel com ele. Cinco filhos: uma muda, mais três mudos, e o único que não tinha problemas de invalidez, fora embora.

         - Tenho dó de seu Elisio Pinto. Ainda por cima uma mulher danada que vive a ralhar, reclamar de qualquer coisa. Dá cá aquela palha ela já está com seus impróprios e reclamações...

         Manoel Dantas, rodopiando bem devagar as chaves e quase sem mastigar as gengivas, sinal de comoção, filosofou:

         - É a vida. Cada um carrega o seu fardo. Deus que escreve certo por linhas tortas, deve ter o seu motivo para que este bom moem prove que é resignado.

         Padre Benedito discordou:

         - Não, Manoel. Deus não faz isso com o seus filhos. Isso é mesmo da natureza, o sangue de Elísio com o de dona Liquinha, sua esposa, não se deram muito bem e produziram filhos defeituosos, não fisicamente, pois a mocinha, a muda, é muito bonita, mas de outra maneira: surdos-mudos.

         Ainda palestraram por alguns minutos. Há muito que o padre jogara o toco do charuto para longe. Sequer lembrava mais a ríspida conversa com Zé do Bicho, despedindo-se do amigo sacristão, entrou e fechou a porta. Manoel Dantas, lançando um olhar para dentro da casa, viu o rebolar das ancas de Mercês, que sumia no escuro das entradas e saídas dos cômodos da enorme e antiga residência do padre Benedito Basílio Alves.

         Reiniciando seu hábito de mastigar as gengivas para combater as cócegas que faziam, e rodando as chaves da igreja no dedo, desceu para sua casa. Na calçada, fumando cachimbo, o aguardava dona Joana. Olhando para a praça com seus lençol de areia, avistando Danta correndo com os outros garotos, deu um potente grito:

         - Danta! Vem se assear para dormir!

         Era sempre assim, ao chegar à casa. Também se transformara num hábito, chamar o filho, embora ainda faltasse muito para o horário de dormir.
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RESUMO - Vai ser uma festa o jogo do bicho. Vamos ver. A chegada do inverno. A morte de Chico Pinto e muitas coisas acontecendo na política. Coronel Benedito saldanha e o professor João Batista. Perseguição e fuga. Próximos capítulos. (Sim: o camaento de Antonio de Luzia de Purana e Dorotéia).

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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.

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