domingo, 23 de outubro de 2011

Romance de domingo...


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra

Por William Guerra*

CAPÍTULO XXXII

         Zé do Bicho logo ajuntou os cambistas, os verdadeiros vendedores da sorte. Cada um dava o seu palpite. Fazia o jogo, arriscando ganhar alguns trocados nos 15 bichos. A chamada fezinha. Milhar, centena, terno de grupo, terno de dezenas, duque, e assim por diante, do 1º ao 5º ou do 1º ao décimo, dependendo do tipo de jogada, mas havia um limite nos montante a ser apostado.

         O resultado viria mesmo pelo correio, via telegrama, da capital do Estado. E era uma festa. Os apostadores e curiosos se aglomeravam em frente ao antigo prédio dos Correios e Telégrafos, na expectativa da chegada do bendito telegrama.

         Lá estavam Raimundo Cabral, o chefe da repartição, mais o telegrafista Cosme Lemos e o carteiro Sebastião Lúcio. Da janela algum deles acenava se já havia chegado o resultado do bicho.

         Daqui a pouco, também, trazendo um enorme saco de lona, vindo de Caraúbas, Lauro Correio, aquele responsável de levar e trazer as correspondências. Saí madrugada ainda com o saco à cavalo até Caraúbas, de lá pegava o trem a Mossoró. Mais tarde voltava com outras correspondências, fazendo o mesmo trajeto de volta.

         Sebastião Lúcio, de família tradicional de jogar no bicho, acenou da janela fazendo com o dedo em sinal de positivo. A turba aplaudia e gritava. Zé do Bicho descia a rua e ia até o sobrado de Filástrio Correia Pinto, onde, da sacada, abria o dito cujo e dizia a milhar da 1ª à 10ª, e, num remate cadenciado e em voz bem alta, falava qual o bicho dera em cada milhar.

         Os que haviam jogado pegavam os apuros e conferiam. Aquele que acertara levantava o braço e se regozijava. Os perdedores logo rasgavam o pequeno papelzinho que se chama mesmo “apuro”. E no meio da multidão, não é que padre Benedito Basílio Alves segurava um dos apuros que fora premiado. Gritava feito menino:

         - Acertei. Jacaré!

         O primeiro bicho fora Jacaré, nas 60, logo, o Vigário ganhara uns trocados.

         O povo comentava:

         - O padre vai acertar todo dia, Deus protege os padres.

         - É ele tem reza forte!

         - Tem isso não. É pura sorte.

         Outra que se imiscuía por ali, pensando ter acertado alguma coisa, era Cotó. Mas num muxoxo reclamou da sua falta de habilidade para jogar. Arriscou praticamente em todos os 25 bichos, justamente o Jacaré, que não se deu ao luxo de jogar, foi o que deu. Perdeu feio. E Doutor Nego também, irmão de Cotó, segurava alguns apuros, nada. Não acertara também. Ele disse para a irmã:

         - Nada não. Amanhã a gente torna a jogar, aí pode ser a nossa vez.

         O banqueiro descia e, na porta principal, conferia os apuros dos acertadores e ia pagando um a um. Chegada a vez do padre Benedito, este o olhou de soslaio e riu, dizendo:

         - A vida é assim mesmo. Um dia é da caça, outro do caçador.

         Ambos deram uma grande gargalhada que chamou a atenção. Zé do Bicho metido no seu paletó amarfanhado era só felicidade. O Vigário pegou o seu e o meteu no bolso e foi-se para casa.

         Danta e Guerra observavam de longe aquela movimentação que se repetiria por muitos dias, meses e anos. O que lhes intrigava, era aquele homem, Zé do Bicho, não tirar aquele paletó velho suado e fedido nem para tomar banho, imaginavam.

         - Vai vê ele nem toma banho.

         Disse Danta rindo e se contorcendo de tanta algazarra. Guerra também ria. Os dois meninos então saíram, queriam algum divertimento. Jogar bola em frente a Legião. Avistaram Wilson que trazia um pedaço de rapadura delicioso. Perguntou qual fora o bicho.

         - Jacaré!

         Respondeu Danta. Wilson exclamou:

         - Vixe!

         Guerra ficou meio encabulado e indagou:

         - Wilson para que você quer saber do bicho se nem joga?

         O comedor de rapadura, depois de triturar mais um pedaço, comentou:

         - É que meu pai disse que jogou no Macaco e no Pavão.

         Os garotos nem sabiam que Pavão corresponde ao número 19, enquanto Macaco o 17. E o bicho que deu hoje foi Jacaré, 17. Quase que o pai de Wilson também embolsa uns trocados.

         Sem mais comentários, se encaminharam à frente da Legião, onde outro meninos estavam tirando a “barra” para iniciarem a pelada. Ao serem avistados, houve uma breve disputa dos dois chefes dos times:

         - Guerra é do meu time!

         - Não, eu o avistei primeiro!

         - Nem pensar! Fique com Danta ou Wilson.
       
         - Tira eles para o seu time, o meu é o Guerra!

         A solução quem deu foi o próprio Guerra:

         - Nada disso. Não vou jogar. Wilson vai para um lado, Danta para o outro. Eu fico de fora espiando.

         A discussão terminou e assim começa a pelada. Sol ainda muito quente, a areia pegando fogo. Mas o meninos não estavam nem aí para o sol e areia quente. O negócio era jogar até o pôr-do-sol e descerem para um banho na lagoa.

         O jogo dos garotos ia bem. Nenhuma briga. E de repente formaram-se umas nuvens negras lá para as bandas do Vale. As pessoas começavam a prevenir as goteiras, botar as rodilhas nos potes, aparar água, aquilo seria chuva na certa daqui a pouco.

         O Ar ficou abafado. Uma quentura de rachar. Reclamação dizendo-se que o mundo vai pegar fogo. Via-se muita gente retelhando suas casas. Mulheres apanhavam roupa nos varais. Os animais se agitavam. Teve início uma onda de relâmpagos e trovões.
         A meninada se preparava para o banho de chuva. Adivinharam com precisão. Porque o nevoeiro pesado subiu, aproximou-se da cidade. Já chovia no Vale. E o primeiro pingo de água. Logo mil, milhões. Chuva torrencial. A meninada deixou que os canos despejassem a sujidade juntada no verão, quando perceberam que a água descia limpinha começaram a disputar os que lançavam maior jato de água.

         A água fazia correnteza sobre a areia. Um cheiro gostoso de terra molhada. Tarde de muita chuva, a primeira do inverno que, certamente, chegou naquele dia.

         Guerra, Danta e Wilson correram a fazer o que eles chamavam “açudes” na correnteza. Botavam pedaços de tijolos, cacos de telha, pedras e muita areia e represavam a água que descia. Brincavam descontraídos. Um mundo alegre, a Natureza era mesmo mãe de todos e de tudo. O tempo mudou de repente.

         Nas casas, os homens aparavam a água da chuva e enchiam os potes. Fartura. Muita água. Alegria. Mas os desprevenidos que não taparam as goteiras, ficavam apreensivos com água que caía dentro de casa. Prometiam amanhã consertar tudo.

         Choveu até a boca da noite. Quando Manoel Dantas foi para bater as seis badaladas, hora do ângelus, já carregava o guarda-chuva aberto, protegendo-se das últimas gotas que insistiam em cair.

         Depois de uma chuva, em Verdejante, tardezinha, as pessoas, quase que por unanimidade, saem às calçadas alegres, saltitantes, conversando com animação, de cabelos molhados. Parece que todo mundo tomou banho de chuva. O que não veio para debaixo das bicas nas calçadas, foram para os quintais, os terraços aproveitarem a abençoada água que dizem vem do céu.

         Danta, Wilson e Guerra, mais alguns garotos, ainda brincam, enlameados, na enxurrada que agora vem mais fraca, lá das ruas de cima. Costumam dizer que nas enxurradas a água começa a descer lá de Ademar Leão, e atravessa até o velho Cemitério, passa pela praça principal e única, contorna a Legião e a Cadeia Pública e sem encontra com as águas mansas da lagoa.

         Verdejante está erguida num tabuleiro, ou num lençol de areia. A água de repente é sugada pelo fofo da terra, some, imediatamente, como por encanto..
         Por isso os açudezinhos feitos pela garotada dura pouco tempo. Secam rápido. Mas eles insistem em continuar na brincadeira. Mas Guerra tem uma idéia.

         - Agora vamos ao banho na lagoa?

         E todos vibram, gritando ao mesmo tempo:

         - Vamos!

         E saem em disparada. Passam por cima de tudo. Quase que se arrebentam nas barreiras que anteparam a lagoa. Mergulham de uma vez. A claridade do sol já não há mais. O sino deu o sinal da chegada da noite.

         E assim, passam alguns dias, mais de um mês, até que entra o mês de mais. Por cá se costuma dizer que é o mês das noivas. Mês que acontecem os casamentos.

         No sertão tudo está verde. Tudo novo. Nova vida.

         Pasto para os animais. Água com fartura. E uma boa safra de milho, feijão e algodão. Melancia fazia lama. Era só felicidade os sertanejos naquele ano de muito inverno.

         Na residência de Vicente Maia havia um breve convescote. Antonio de Luzia de Purana fora até ali, acompanhado de sua mãe, convidar o comerciante para ser seu padrinho de casamento. Vicente Maia aceitou de bom grado, perguntou apenas para quando estava marcado e fez uma exigência:

         - Aceito. Dia 15 de maio. Mas eu sou quem vai pagar todas as despesas no Cartório ena Igreja. Do contrário, procurem outro padrinho!

         Antonio e sua mãe, como que por transmissão de pensamento, levaram ambos as mãos à cabeça, e Purana adiantou-se e, sabedora daquela exigência feita por aquele homem de palavra, apenas disse:

         - Obrigado, compadre Vicente. Sendo assim, o senhor faz como para...

         - Nada. Eu passo no Cartório e na casa paroquial e deixo tudo pago. O resto é com vocês!

         Cortou o homem que não aceitava um não a um seu pedido e a uma sua decisão. Tudo combinado. Os agradecimentos de praxe, despedidas. Naquela mesma tarde caiu um toró dos mais fortes.

         Acendidos os lampiões de gás dispostos na rua principal, na residência do Coronel Chico Pinto costumava-se realizar uma reunião na calçada. Para ali iam Antonio Lopes, o farmacêutico; Adrião Bezerra; Manoel de Brito; Chico Canuto, o homem mais rico da cidade; Elísio Pinto, pai dos mudos e mais alguns, como Manu, o pedreiro; Rádio, o sujeito que vivia de antena ligada e sabia de tudo o que se passava em qualquer parte.

         Aquela reunião só não acontecia na noite que houvesse chuva. Isso não acontecendo, lá estavam os amigos batendo papo, tudo sobre a comunidade, a política e a vida alheia. Nessa época o assunto era o inverno, qual o sítio que teve mais chuva, o que os agricultores estavam comentando. Até que por volta das 21h30, mais ou menos, a dita cuja reunião de amigos se dissolvia e cada um tomava o rumo de casa na noite escura, alumia apenas pelas tochas dos lampiões e, em noites de lua, aí sim, era gostoso caminha ao luar.

         E naquela noite, acabada a reunião, alguém presta auxílio ao Coronel Chico Pinto arrumar as cadeiras na sala, este agradece e tranca a porta da frente. Vai até à cozinha e abre uma porta que dá para o quintal. Tinha o hábito de lavar o rosto e os pés com uma bacia de água, antes de ir deitar. Ao fazer aquele gesto de todas as noites, recebe um tiro certeiro de rifle. De longe se ouviu o estampido.

         Sua mulher grita desesperada, Chico Pinto está morto. Levam os filhos pequenos para a casa paroquial. Aparece o padre, todos os amigos que acabaram de sair. Chega o prefeito, seu irmão Lucas Pinto. O delegado. A polícia. Há um alvoroço completo em toda a Verdejante. A ordem para vasculhar tudo, todos os recantos, a procura do assassino. Nenhum vestígio.
Nada. Um mistério se abate sobre a pacata cidade.

         Chico Pinto é homem de prestígio regional. Político de alto conceito no governo do Estado. Uma comoção além das fronteiras do município. Emissários são enviados às cidades vizinhas. Logo Verdejante está toda a cordada. Até os meninos.

         Guerra e Danta viram o corpo do assassinado homem. Ficou por ali, cada grudado no seu respectivo pai. Carlos Guerra, o tesoureiro e Manoel Dantas, o sacristão.

         E as mais variadas opiniões pipocavam em cada canto da cidade. Foram seus inimigos políticos. Chico Pinto escapou da emboscada de Massilon, mas agora não. Mas onde se meteu o assassino? Quem deu cobertura?

         Essas e outras indagações. Ninguém sabia de nada. Ninguém viu. Nenhuma testemunha. A noite foi de pesadelo em Verdejante. A partir daquela data a cidade nunca mais seria a mesma. A política tomou um rumo de perseguições e muita violência.

         Um dia após o enterro mais concorrido da história dos enterros de Verdejante, até àquele três de maio, Chico Pinto foi assassinado no dia anterior, pois um dia após ao seu sepultamento, outra bomba explode na cidade.

         Era a manhã do dia 4 de maio. Um curioso, que passava em frente à delegacia de polícia, perguntou o porquê do ajuntamento de tanta gente àquela hora:

         - Que está acontecendo?

         Outro curioso transeunte igual ao seu interlocutor, respondeu:

         - Descobriu-se quem matou o Coronel Chico Pinto.

         Ficou admirado, arregalou bem os olhos e ainda indagou:

         - E quem foi?

         O homem não escutou conversa, correu até à Delegacia que se encontrava repleta de gente. Lá chegando foi perguntando a um e a outro:

         - Quem descobriu o assassino?


----------------------------------------------------------------------

RESUMO - A pista para descobrir o assassino de Chico Pinto. Começo de política acirrada. João Batistas, o professor, candidato da oposição tem que se esconder. Episódios. O casamento de Antonio de Luzia de Purana e Dorotéia. Chega o São João. Agora asim, a verdade sobre a ida de padre Benedito para a capital. Próximos capítulos.
----------------------------------------------------------------------


* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.

        
        


        

Nenhum comentário:

Postar um comentário