segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Conflito de vocabulário



Haroldo tirou o papel do bolso, conferiu a anotação e perguntou à balconista:

- Moça, vocês têm pendrive?

- Temos, sim.

- O que é pendrive? Pode me esclarecer? Meu filho me pediu para comprar um.

- Bom, pendrive é um dispositivo em que o senhor salva tudo o que tem no computador.

- Ah, como um disquete...

- Não. No pendrive o senhor pode salvar textos, imagens e filmes. O disquete, que nem existe mais, só salva texto.

- Ah, certo. Vou querer um.

- De quantos gigas?

- Hein?

- De quantos gigas o senhor quer o seu pendrive?

- É o que minha filha? O que é giga?

- É o tamanho do "pen".

- Ah, tá. Eu queria um pequeno, que dê para levar no bolso sem fazer muito volume.

- Todos são pequenos, senhor. O tamanho, aí, é a quantidade de "coisas" que ele pode arquivar.

- Ah, tá. E quantos tamanhos existem?

- Dois, quatro, oito, dezesseis gigas...

- Hmmmm... Meu filho não falou de quantos gigas queria.

- Neste caso, o melhor é levar o maior.

- Sim, eu acho que sim. Quanto custa?

- Bem, o preço varia conforme o tamanho. A sua entrada é USB?

- Como é minha filha?!

- É que, para acoplar o pen no computador, tem que ter uma entrada compatível.

- USB não é a potência do ar condicionado?

- Não, aquilo é BTU.

- CBTU?

- Não! Isso é empresa ferroviária. "B"! BTU!

- Ah! É isso mesmo. Confundi as iniciais. Bom, sei lá se a minha entrada é USB.

- USB é assim, ó: com dentinhos que se encaixam nos buraquinhos do computador. O outro tipo é este, o PS2, mais tradicional: o senhor só tem que enfiar o pino no buraco redondo.

- Hmmmm! Enfiar o pino no buraquinho, né? Estanho!... Isso me lembra outra coisa...

- Hehehe! O seu computador é novo ou velho? Se for novo, é USB - chata -, se for velho é PS2 - redonda.

- Continua me lembrando outra coisa... hehehe... Mas acho que o meu tem uns dois anos. O anterior ainda era com disquete. Lembra do disquete? Quadradinho, preto, fácil de carregar, quase não tinha peso. O meu primeiro computador funcionava com aqueles disquetes do tipo bolacha, grandões e quadrados. Era bem mais simples, não acha?

- Os de hoje nem têm mais entrada para disquete. Ou é CD ou pendrive.

- Que coisa! Bem, não sei o que fazer. Acho melhor perguntar ao meu filho.

- Quem sabe o senhor liga pra ele?

- Bem que eu gostaria, mas meu celular é novo. Tem tanta coisa nele que ainda não aprendi a discar.

- Deixe eu ver. Poxa, um smarthphone! Este é bom mesmo! Tem bluetooth, waffle,brufle, trifle, banda larga, teclado touchpad, câmera fotográfica, filmadora, radio AM/FM, TV, dá pra mandar e receber e-mail, torpedo direcional, micro-ondas e conexão wireless!

- Micro-ondas? Dá para cozinhar nele?

- Não, senhor. Assim o senhor me faz rir. É que ele funciona no subpadrão, numa sub-onda, por isso é muito mais rápido.

- E Bluetooth? Estou emocionado. Não entendo como os celulares anteriores não possuíam Bluetooth.

- O senhor sabe para que serve?

- É claro que não.

- É para um celular se comunicar com outro, sem fio.

- Que maravilha! Essa é uma grande novidade! Mas os celulares já não se comunicam com os outros sem usar fio? Nunca precisei fio para ligar para outro celular. Fio em celular, que eu saiba, é apenas para carregar a bateria...


- Não, já vi que o senhor não entende nada mesmo. Com o Bluetooth, o senhor passa os dados do seu celular para outro, sem usar fio. Lista de telefones, por exemplo.

- Ah... E antes precisava fio?

- Não, tinha que trocar o chip.

- Hein? Ah, sim, o chip. E hoje não precisa mais chip...

- Precisa, sim, mas o Bluetooth é bem melhor.

- Legal esse negócio do chip. O meu celular tem chip?

- Momentinho... Deixe eu ver... Sim, tem chip.

- E faço o que com o chip?

- Se o senhor quiser trocar de operadora. Portabilidade, o senhor sabe.

- Sei, sim, portabilidade, não é? Claro que sei. Não ia saber uma coisa dessas, tão simples? Imagino, então, que, para ligar tudo isso, no meu celular, depois de fazer um curso de dois meses, eu só preciso clicar nuns duzentos botões...

- Nããão! É tudo muito simples, o senhor logo aprende. Quer ligar para o seu filho? Anote aqui o número dele. Isso. Agora é só teclar... Um momentinho... E apertar o botão verde... Pronto, está chamando.

Haroldo segura o celular com a ponta dos dedos, temendo ser levado pelos ares, para um outro planeta:

- Oi, filhão, é o papai. Sim. Me diz, filho, o seu pendrive é de quantos... Como é mesmo o nome? Ah, obrigado, quantos gigas? Quatro gigas está bom? Ótimo. E tem outra coisa, o que era mesmo? Nossa conexão é USB? É? Que loucura. Então tá, filho, papai está comprando o seu pendrive. À noite eu levo pra casa.

- Que idade tem seu filho?

- Vai fazer dez em março.

- Que gracinha...

- É isso, moça, vou levar um de quatro gigas, com conexão USB.

- Certo, senhor. Quer para presente?

...

Mais tarde, no escritório, Haroldo examinou o pendrive. Um minúsculo objeto, menor do que um isqueiro, capaz de gravar filmes? Onde iremos parar? 

Olha, com receio, para o celular sobre a mesa. "Máquina infernal", pensa. Tudo o que ele quer é um telefone, para fazer e receber chamadas. E tem, nas mãos, um equipamento sofisticado, tão complexo que ninguém que não seja especialista ou tenha a infelicidade de ter mais de quarenta anos saberá compreender.
Em casa, ele entrega o pendrive ao filho e pede para ver como funciona.

O garoto insere o aparelho e, na tela, abre-se uma "janela". Em seguida, com omouse, abre uma "página" da internet, em inglês. Seleciona umas palavras e um 'heavy metal' infernal invade o quarto e os ouvidos de Haroldo.

Um outro clique e, quando a música termina, o garoto diz:

- Pronto, pai, baixei a música. Agora eu levo o pendrive para qualquer lugar e, onde tiver uma entrada USB, eu posso ouvir a música. No meu celular, por exemplo.

- Seu celular tem entrada USB?

- É lógico. O seu também tem.

- É? Quer dizer que eu posso gravar músicas num pendrive e ouvir pelo celular?

- Se o senhor não quiser "baixar" direto da internet...

Naquela noite, antes de dormir, deu um beijo na esposa e disse:

- Clarinha, sabia que eu tenho Bluetooth?

- Como é que é?

- Bluetooth. Não vai me dizer que não sabe o que é?

- Não enche, Haroldo, e me deixe dormir.

- Meu bem, lembra como era boa a vida, quando telefone era telefone, gravador era gravador, toca discos tocava discos e a gente só tinha que apertar "um" botão para as coisas funcionarem?

- Claro que lembro, Haroldo. Hoje é bem melhor, né? Várias coisas numa só, até Bluetooth você tem.

- E conexão USB também.

- Que ótimo, Haroldo, meus parabéns.

- Clarinha, com tanta tecnologia a gente envelhece cada vez mais rápido. Fico doente de pensar em quanta coisa existe, por aí, que nunca vou usar.

- Ué? Por quê?

- Porque eu tinha recém aprendido a usar computador e celular e tudo o que sei já está superado.

- Por falar nisso, temos que trocar nossa televisão.

- Ué? A nossa estragou?

- Não. Mas a nossa não é LCD, não tem HD, tecla SAP, slowmotion e reset.

- Tudo isso?

- Tudo. Boa noite, Haroldo, vai dormir, tá?



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