quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Romance de Quinta


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra

  Por William Guerra*


CAPÍTULO XXIX

         Guerra e Danta resolveram, hoje, irem a uma passarinha lá paras as bandas da Baixa do Tamarineiro. Faz tem por não vão por lá. Lá onde perderam aquele ninho de rolinhas e que deu uma grande confusão.

         Saíram cedo de casa. O sol foi pega-los já ali, debaixo do pé de tamarindo. Sentados. Sem pressa. Palestravam animadamente sobre o fim do ano que chegara tão de repente. Parece que foi ontem, quando tudo começou. Ano novo. As horas nunca param. Param os relógios, as horas não. Por isso passam os dias céleres, os meses, os anos. Num piscar de olhos tudo é diferente. Tudo muda. As crianças ficam adolescentes. Os jovens viram adultos. Os adultos têm muita experiência.

         Danta dizia:

         - Tanta coisa se passou nesse ano. E tem uma coisa que está para acontecer. Nem se você está sabendo.

         Guerra perguntou, olhando um casal de passarinhos que voavam alegres sob a luz da manhã.

         - Que é?

         Danta ficou de pé, coçou a cabeça, voltando-se para o amigo, senta mais próximo deste e fala:

         - Seu padrinho padre Benedito vai embora.

         Guerra não deixou de olhar o casal de passarinho. Mas sentiu algo manifestar-se dentro dele. Assim como um aperto no coração, uma angústia, um sintoma de antecipada saudade. Padre Benedito Basílio Alves, homem bom, com quem fez grande amizade. Dormia na casa paroquial, quando queria. Aprendeu as primeiras letras com ele. Lhe dava moedas para comprar alfenim. Orientava-lhe e dava conselhos. Seu defensor em horas de peraltices. Vai embora... Pensou. Danta observou-lhe o semblante, e distinguiu uma cara de choro, um sentimento de perda se apoderava do menino Guerra.

         Levantou-se. Limpou o calção dos garranchos pregados atrás. Saiu caminhando devagarzinho. Cabeça baixa. Tomou o rumo de casa. Danta o acompanhou, tentou argumentar:

         - Espera! Chegamos agora, já estamos de volta?

         O amigo não respondeu nada. Continuou no seu passo triste. Ainda lançou um olhar para trás, vendo a algazarra que fazia aquele casal de passarinhos. Estes sim eram felizes de verdade. Ninguém partia. Nenhuma separação. Amigos brincavam naquele descampado, ou penetravam a brenha esquecida dali. Nada os fazia menos felizes. Já ele, que se apegara ao padre Bendito, não iria suportar a separação. Como faria, perdendo um grande amigo?

         Chegaram na rua que dava para a casa do seu avô, Adrião Bezerra. Confidente, conselheiro e suporte nas horas de intranqüilidade e sofrimento. Danta perguntou-lhe se queria ficar sozinho. Guerra disse não com a cabeça. Danta o acompanhou. Subiram os enormes batentes ante a calçada da casa do avô. A porta estava aberta entraram. Encontraram Vicência, sentada numa cadeira tomando café. Guerra perguntou por Adrião Bezerra. Sua tia respondeu que fora ao quintal, já estaria de volta. Os meninos nem esperaram maiores explicações, foram ter com o homem de barba branca e olhos azuis. Adrião Bezerra se encontrava regando um canteiro onde plantaram algumas verduras. Galinhas ciscavam a cata de detritos. Havia uma acompanhada de muitos pintinhos que faziam um grande alarido piando sem parar.

         Ao avistá-los, o ancião, camisa de mangas compridas e calça de suspensórios, este abriu um sorriso largo e aconchegante.

         - Que novidade, filho? Que quer do seu avô nesta manhã tão aprazível?

         Guerra pegou na sua mão. O homem sentiu que algo estranho se passava. fria como fundo de pote, não era o natural da mão do seu neto predileto. Deixou o regador por ali, puxando-o pela mão, entraram em casa pela cozinha. Danta os acompanhando sempre. Adrião Bezerra sentou na sua rede. Ordenou que Vicência lhe trouxesse café. Os meninos disseram que não queriam. Mandou os garotos sentarem. E que Guerra viesse mais para perto, queria ouvir o que ele teria para dizer.

         - Estou sentindo que você, Guerra, está com algum problema. Ou estaria eu enganado?

         O menino trazia os olhos marejados. Não conseguia esconder sua emoção. Foi direto ao assunto.

         - Võ, estão dizendo que meu padrinho, o padre Benedito vai embora?

         Então é isso? Pensou o avô lá com os seus próprios botões. A xícara de café havia chegado, começou a sorver o café com o pensamento naquilo que deveria dizer ao neto. O que poderia ser mais bem explicado a ele naquele momento. Pensou. Tomou todo o café, devolveu a xícara à Vicência. Ajeitou-se na rede. Numa mesinha próxima havia uma caixa de charutos. Danta foi encarregado de buscá-la. Adrião Bezerra retirou um. Apalpou-o. Introduziu um palito de fósforo numa das extremidades do charuto. Segurou na boca e, as mãos em concha, o acendeu sem dificuldade. Balançando o fósforo ainda aceso entre os dedos, pagando-o, jogou pela porta, mas o vento o trouxe de volta que caiu bem perto de Guerra. Este o apanhou e ficou brincando com aquele palito já gasto.

         Muita fumaça dançava na sala, por cima das cabeças dos meninos. Danta deliciava-se com os gestos daquele homem miúdo mas extremamente inteligente, que diziam que teimava em qualquer discussão de qualquer assunto. Sem prolongar mais a sua resposta sobre o que acabara pergunta o seu neto, emitiu foi um parecer.

         - Bem, meu filho. Quem não veio para ficar, um dia vai embora. Padre Benedito, nosso grande amigo, homem abençoado por Deus, seu padrinho e amado por todos de Verdejante, pertence a uma espécie de Congregação e deve obediência aos seus superiores. Se chega a ordem para que vá assumir outra freguesia, ele não pode se negar a isso. Maneira que ou chorando ou gemendo, nós que o amamos, temos que nos conformar.

         Guerra quase soluça com aquelas palavras. Adrião Bezerra disse aquilo de propósito. Queria que o menino entendesse que o que viesse a acontecer, partida ou não do Vigário agora, num futuro próximo isso aconteceria de qualquer maneira. Ele tinha que entender e ser forte.

         - Olha Guerra e olha você também, Danta. Padre exerce um sacerdócio. Um representante de Jesus aqui na terra. Se ele já pastoreou bastante o rebanho de ovelhas de Cristo em nossa cidade, agora deve fazê-lo noutro lugar. E para cá virá outro. É assim. Espécie de rodízio. Este vai para lá, aquele vem, outro assume ali... Compreende? Não pode ficar colado definitivamente numa Paróquia, não, um padre. Tem que sair e vir outro.

         Danta foi quem falou, ainda fazendo uma indagação:

         - O senhor sabe se ele vai logo, ou ainda passa mais dias aqui?

         Adrião Bezerra gostou daquela pergunta. Pois a conversa não ficaria somente em explicações. E fumando sempre o seu charuto, respondeu:

         - Isso eu não dizer. Mas hoje mesmo farei uma visita ao meu amigo padre Benedito e ele me dirá quando partirá. De qualquer maneira pedir-lhe-ei que adie o quanto pude sua saída de Verdejante.

         Suas últimas palavras pronunciadas sobre a indagação, foram lançando um olhar para o neto desconsolado. De repente, numa tática infalível, convidou os dois garotos:

         - Por que nós três não vamos assistir, daqui a pouco, o julgamento de Jesus, o homem que fez o bode Merlim desaparecer?

         Danta arregalou os olhos e exclamou:

         - É mesmo! A gente nem se lembrava mais que era hoje. Vai ser lá na sala do Juiz de paz, não é isso seu Adrião?

         O homem, já de pé, pegando a bengala e o chapéu, rindo, respondeu:

         - Isso mesmo! Vamos?

         Guerra não se animou muito, mas acompanhou o avô. Afinal tinha mesmo acertado com os amigos Danta e Wilson que iriam vê o que iam fazer com Jesus. Os garotos deixaram ali mesmo os embornais e os chapéus de palha. De calção e camisa entraram na sala onde já havia muita gente.

         Um movimento lá fora da sala do Juiz. Chega o réu escoltado por quatro soldados e, à frente, o delegado Luiz Marinho. Um sorriso mostrando os dentes e, em destaque, um que ele diz ser de ouro. Chapéu do panamá enterrado na cabeça. Senta na fila da frente das cadeiras. Jesus fica entre dois soldados. Cabeça baixa. Os curiosos o apontam como quem diz: foi aquele quem matou Merlim, o bode! Mas este homem não é filho de Verdejante. Ele já disse ao delegado que carregara o bode, sim, mas não foi ele quem o matou. E quem teria sido?

         Nisso entra o Juiz togado. Pice-nez sobre o nariz. Cavanhaque e um bigodinho bem fininho. Homem pequeno, magro, passo apressado. Os cabelos escorridos parecem estar colados na testa que brilha. Carrega alguns livros. Coisa importante. Acompanham-no dois oficiais de justiça. Vai para trás de uma mesa. Ali já o aguardam o processo e um escrivão.

         Manda um dos meirinhos anunciar quem será julgado naquela ocasião. Feita a leitura o Juiz dá umas marteladas sobre a mesa, pede silencia, a turba fica num zum zum zum  sem parar.

         - Cadê o acusador? O representante da promotoria?

         O povo fica a olhar para trás, de lado. Alguns chegam a ficar de pé. Nada. Nem sinal do Promotor Público. Que terá acontecido? Ninguém sabe, ninguém viu. Mas alguém levanta o braço e quer falar>

         O Juiz de paz dá licença para que o cidadão se pronuncie.

         - Eu vi.

         Mas o Juiz, olhando por cima dos pequeninos óculos, pergunta:

         - O que foi que o senhor viu?

         O homem, já de pé, completa:

         - Eu vi o Promotor.

         O Meritíssimo volta a inquirir:

         - Aonde foi que o senhor viu o Promotor?

         Silêncio total. A multidão que lotara a sala do Juiz redobra a atenção no que vai dizer aquele homem que, diga-se de passagem, também é desconhecido dos verdejantenses.

         - Num bar, bebendo...

         Gargalhada por toda parte. Zombaria. Um frisson total. O Promotor deveria estar embriagado, àquela altura.

         O Doutor Juiz quase afunda a mesa de tantas marteladas. Depois de muito bater foi possível um minuto de atenção. Ele falou, se dirigindo ao desconhecido:

         - Mas qual é o bar onde ele está bebendo?
        
         Novamente ficando de pé, disse:

         - Bar dos Pebas. Perto do Apanha Peixe!

         O Juiz de paz levantou-se de sua cadeira. Retirou com violência os óculos, pegou seus livros e fez menção de sair. O povo ria a vale. Mas foi contido com a mão levantada do advogado do réu, Filastroo. Um rábula muito experiente e conceituado no meio forense naquela região. Afinal ele era o defensor de todos que não podiam contratar um advogado que também não havia por cá, tinha que se buscar na capital. Seu Filastrio pediu vênia ao Juiz que fizesse um termo de assentada, abrindo a sessão, depois que se quisesse suspendesse por falta de um Promotor. Mas ele, o defensor, requeria, na forma da lei, a liberdade para o seu constituinte, Jesus, por excesso de prazo. Sua Excelência, o Juiz, voltou atrás, ordenou que o escrivão fizesse a assentada de abertura da sessão. Que se registrasse o requerimento do advogado de defesa. Deferiu o pedido mandando expedir o Alvará de soltura. E, ao final, o povo já mais calmo em seus lugares, pronunciou as seguintes palavras:

         Fica suspensa a audiência de instrução e julgamento do réu por nome de Jesus, até segunda ordem. O Jesus vai para a rua. Mas que não se ausente de Verdejante sem autorização. Quando ao Promotor terá que se explicar aos seus superiores. Vou fazer a ocorrência e denunciá-lo na Corregedoria estadual. Obrigado a todos. Declaro encerrada a audiência.

         Mas ainda aconteceu um fato histórico. O povo aplaudiu o advogado de defesa e desocupava a sala do Juiz gritando o nome de Jesus! Este passou, de repente, de réu à vítima. O intrigante era saber, afinal, quem matou o bode, já que Jesus declarara que ele apenas roubou o caprino.

         Guerra e Danta, agora com a companhia de Wilson, saíram do recinto igualmente gargalhando com a palhaçada. Conversavam e comentava com Adrião Bezerra que bradava:

         - Mas isso é o cúmulo! O Promotor, o acusador, bebendo num boteco por aí, e não vem para cumprir com o seu ofício?!

         Wilson apenas exclamou:

         - Vixe!

         Danta rindo, quase não pára mais de tanto rir, conseguiu dizer:

         - Bom se ele tivesse parecido embriagado para acusar Jesus!

         Guera achava graça, mas nada dizia. Ainda pensava no padrinho que poderia ir embora de Verdejante. O avô do Guerra se despediu. Recomendou juízo aos três e prometeu que iria falar com padre Benedito sobre sua saída da Paróquia.

         Mas como em Verdejante os acontecimentos não param. Um grande aglomerado de pessoas em volta de uma antiga árvore ali, na praça, chamou a atenção dos meninos. Estes, não escutaram conversa, correram até lá. Um homem, de machado em punho, tentava derrubar aquela árvore. Ninguém tinha coragem de impedi-lo. Guerra rompeu a multidão e correu e abraçou o tronco da amiga árvore.

         O povo aplaudiu a coragem daquele pivete. O que queria praticar o terrível crime de matar uma árvore, que há dezenas de anos dava sombra em frente àquelas casas, ficou possesso. Ameaçou derrubar a árvore com o menino abraçado ao tronco.

         Apareceram o prefeito, Coronel Lucas Pinto e o delegado, Luiz Marchante. Em seguida chegam o padre Benedito Basílio Alves e o professor João Batista.

         Mais dois meninos se abraçam com o tronco da árvore: Danta e Wilson em solidariedade ao amigo Guerra. Outras crianças chegaram e ficaram em volta segurando as mãos.

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NOTA DO AUTOR
Pedimos desculpas por algumas palavras nos capítulos anteriores digitadas com uma letra a mais, ou a menos, ou outro pequeno erro. Procuraremos ser mais atentos daqui até o último capítulo. Em breve, esta história sairá em forma de livro que publicaremos com as devidas correções e algumas necessárias alterações. Obrigado.




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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.



        

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