quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Romance de Quinta

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
  Por William Guerra*


CAPÍTULO XVI

            Manhã cedo já havia sido celebrada a primeira missa. 10h00 depois das chamadas reverberadas pelo potente sino, os devotos voltam à igreja. De longe se ouvia o Órgão emitindo suas notas pelos dedos ágeis de Mundinha Dantas, enquanto os fiéis iam cantando os hinos para aquela celebração. A polifonia encantava. Um ar de bonança pairava acima das cabeças dos fiéis. A fé no Cristo, a fé em Deus! Os pedidos à padroeira benfazeja. Madrinha de vela de muitos verdejantenses. Tanto Nossa Senhora da Conceição quanto São João batista foi padrinhos.

            Nas ruas movimento de pessoas. Animais trotando, eram os sitiantes que apareciam para o dia de festa. Hospedavam-se em casas de parente. Ali, na residência de Janoca Pade, muitos vinham com suas montarias, amarravam nos troncos dos pés-de-figo e arriavam a cela, retiravam a brida e deixavam os fogosos cavalos, burros e mulas ficarem à vontade. Mais tarde uma ração de milho na mochila e um refrescante banho na lagoa.

            De tarde dar-se-ia a apresentação dos Congos. O rei Henrique, rei cariongo iria comandava a dança. Havia a cantiga. A rainha Ginga também aparecia. Todos os componentes bem vestidos e de máscara empunhando espadas.

            Haveriam de se apresentar, também na praça, entre vivas da população, cantadores de viola. Desafios entre eles. Raimundo e Mané Calango eram os mais famosos:

            “Respondeu a Mané, Raimundo:
              Desafio, pois sim, meu sinhô,
              Sendo bebê na cantoria ainda,
              Mas sem ter um cantadô,
              Depois do sangue esquentado,
              Canto até dá uma dô”.

            Foi assim que certa vez Raimundo enfrentou o famoso Mané Calango, um dos mais bem conceituados repentistas dessas redondezas. Diz que o insultado respondeu àquele desafio versando assim:

            “Intão vem lá seu moço
              Metido que já te pego
              Pra saber com quantas
              Cantadas eu te renego,
              Deixando-te aleijado,
              Além de manco, cego!”
             
            Ninguém perdia uma cantoria. Os desafiantes quanto mais atrevidos, melhor. Os assistentes ficam em volta, aplaudindo, tomando umas e outras e ditando motes pra ver qual improvisava com mais arte.

            As cantorias não são privilégios somente nos festejos dos padroeiros, não. Elas estão em qualquer parte do Nordeste, quaisquer ajuntamentos de gente, nas feiras, nas moendas de farinha, nas debulhas de feijão, nos casamentos.
            E hoje ainda haveria uma corrida de cavalos que os habitantes deste lugar dão o cognome de “corrida de prado”. Consiste em reunir os melhores potros da região e realizar uma espécie de corrida em parelhas. O perdedor cai fora a cada dupla de cavalos correndo num corredor de areia de uns 200 metros. O vencedor fica para mais uma corrida, depois outra, e assim os dois que chegam à final disputam o primeiro lugar. Em Verdejante, distante milhares de quilômetros, seus habitantes praticavam o esporte dos Coronéis e das Madames, o turfe (ou corrida de cavalos mesmo) com o Jóquei montado em alinhado animal com arreios de primeira linha. Na corrida de prado, cá de Verdejante, os competidores escolhem adolescentes os mais magros e maneiros para montarem os animais em osso. Seguram apenas no cabrestilho de corda, enquanto com um cipó de marmeleiro açoitam a montaria para disparar na pista em linha reta. Lá, os jóqueis usam esporas, aqui não.

            E para encerrar a tarde de 7 de dezembro, a meninada seria os centro das atenções, quando disputariam a corrida no saco, o ovo na colher, o gato no pote, o pau de sebo, e tantas outras atrações que os pivetes tão bem sabiam executar para o deleite de toda a comunidade.

            De noite, os leilões de encerramento. Antes, porém, mais balões. Qual seria a surpresa de hoje? Segredo total. Houve pessoas que tentaram descobrir, espiando pelas brechas das janelas do casarão de Chico Guarda, o que ele fabricava para logo mais, nem deu certo, ninguém viu nada, ninguém ficou sabendo de nada.

            Guerra e Danta não perdiam um divertimento. Participavam de tudo. Foram à missa, assistiram as Congadas, riram com os cantadores de viola, torceram na corrida de cavalos e, eles mesmos, participaram das acrobacias de meninos nas competições despretensiosas. E como sempre, já era até covardia, Guerra ganhou no pau de sebo e na corrida no saco. Os prêmios iriam ser gastos todinhos na festança logo mais à noite: alfenim de açúcar; aluá feito de casca de abacaxi; caipira de Golinha... E tudo o mais que se fizer necessário para o seu cont5entamento e dos amigos.

            Tudo transcorreu na maior alegria. Até Banda de Música veio de cidade vizinha. Coisa mais linda. Os dobrados tocados em desfiles pelas areentas ruelas da cidade. O Hino Nacional. A valsa mais conhecida.

            Os leilões foram bem concorridos. Mas, algo está faltando. O que? Os balões de Chico Guarda que tiveram de novidade?

            Foi surpresa geral. O balão todo de azul em formato de estrela! Mas isso pode? Ninguém sabe dizer ao certo como Chico Guarda montou o danado. Foi a vez dos correligionários da barraca azul pilheriarem e lavar o peito. Ontem foi o encarnado quem deu as cartas. Hoje foram os da barraca azul que vibraram. Deram vivas. Soltaram foguetões além da conta.

            E a estrela azul com alguns salpicados de dourado e prata, subiu... Subiu e encanto a todos. De repente aquele ponto azul faiscando se confundia com uma estrela de verdade. Que faltava Chico Guarda inventar? Um coração, uma estrela. E depois?

            - Só em junho faço outros balões. Por enquanto, chega.

            Foi sua resposta a alguns curiosos que lhe indagavam: qual a novidade de amanhã? Amanhã os festejos se encerram com a procissão de tarde. Antes da procissão, porém, haverá a apuração de quanto rendeu cada uma das barracas, vê quem foi eleita a Rainha da festa de Nossa Senhora da Conceição.

            Guerra e Danta andavam pelo meio do povo. Muita gente. De fora vieram alguns verdejantenses que se encontravam morando noutras cidades. Movimento de pessoas vendendo bugigangas, de Bêbados desconhecidos, de namorados se esbaldando no carrossel de Júlio do Ó.

            - Olha Guerra, vai haver dança no salão do Grupo Escolar. A orquestra de músicos da Banda que veio de fora vai animar.

            Disse Danta em tom de novidade. Grande notícia. Guerra apenas deu de ombros, não lhe interessava.

            - Que temos com isso? A gente não dança?

            Mas não deixava de ser interessante ouvir o toque de uma orquestra tirada da Banda de Música. Guerra achava bonito, em particular o toque da clarineta.

            - Mas nós vamos olhar os músicos. Quero ver se tem clarineta na orquestra.

            Wilson, como sempre, traz as últimas do dia. Chega apressado, vem chupando um pirulito. Avista os dois amigos e logo espalha:

            - Ninguém sabe como, tem ali um homem com uma enorme lata às costas. Vai tocando num triângulo de ferro9 e dizendo:

            - Cavaco chinês...
           
           - Cavaquinho chinês!
           
           - Quem vai querer?

            Os meninos foram até o local. Aquilo sim, que era uma novidade. Nunca ouviram falar nisso. Danta indagou:

            - É para a gente comer?

            Wilson deu a resposta:

            - Se comprar?

            E muita gente já comprava a lambiscaria chegada ainda agorinha. O sujeito era magro e alto, tinha uma corcova, deve ser de tanto carregar o peso daquela estrovenga.Era o que ia no pensamento de Guerra. E aquela coisa parecendo uma folha seca, feito de que?

            O homem explicava aos fregueses:

            - Farinha de trigo, açúcar e sem fermento.
           
           As crianças não perderam a oportunidade e comiam até se fartar. Que coisa? Aparece de tudo nessa Verdejante de meu Deus! Dizia lá para os seus botões Manoel Dantas, que dava uma espiada pelas barracas, saber como os negócios estavam acontecendo.

            - Ummm... O tal do cavaquinho Chinês é bom demais, sô!

            Propalava, pois mesmo com a boca engelhada a folha seca feita de farinha de trigo se desmanchava na boca, não se precisava ter dente para degustar o cavaco Chinês. Alguém se atreveu a perguntar ao vendedor ambulante:

            - E aí meu bom homem, tem esse nome de Cavaco Chinês, por que foi inventado na China?

            O vendedor riu, sua resposta seria ferina, conteve-se, encontrava-se em terra alheia. Mas não faltou quem respondesse por ele:

            - Não, Fifiu, foi feito na casa da mãe Joana...

            Fifiu ficou desconfiado. Não sabia o que perguntar. Aliás, nem tinha mais fala para aquele instante. Por que fora fazer pergunta tão idiota?

            - Claro amigo. Foram os chineses que inventaram o Cavaco Chinês!

            Disse o homem forasteiro, tentando evitar algum atrito. Ficou por isso mesmo, Fifiu, agricultor, sem estudos, fez a pergunta por pura curiosidade, nem sabe onde fica a China e nem o que se faz por lá. Inocente como ele só.

            Guerra, Danta e Wilson cada um saiu com um mercadinho de cavaco Chinês, que o desconhecido retirava com um papel de embrulho e no dito cujo embrulhava e entregava ao freguês. Esses três meninos apreciaram bastante o cavaco que saíram por toda parte divulgando a novidade da noite.

            Encerrados os respectivos leilões. Cada cordão tentando demonstrar firmeza, segurança, argumentando que ganhara a guerra, isto é, conseguiram eleger a sua candidata. E a candidata, quem é essa desconhecida?

            Geralmente escolhidas dentre as mais graciosas beldades da cidade. Filhas de gente importante. O sobrenome tem bastante destaque nessas competições, pois se diz assim:

            - Filha de Fulano? O dono da Loja Grande?

            - Beltrana, tão bem criada pelos avós, donos da Fazenda de gado?

            Assim soa as escolhas, as preferências, levando-se em conta que aquela que tiver o nome mais influente por parte dos pais ou avós, estará com a vantagem. E nesta noite não foi diferente. Cada prenda arrematada a peso de ouro pelos seus simpatizantes, causa essa expectativa deixando os torcedores discutindo sobre quem deverá vencer dada a concorrência em ambas as barracas. O importante é que todos estão bastante animados.

            Os mais idosos vão se recolher às suas moradas, enquanto os jovens partem para o Grupo Escolar onde haverá dança. Em frente ao grupo Escolar se localizaram algumas barracas preparadas para vender cachaça. E um cheiro forte de tripa assada invade o ar. A fumaça sobe rodopiando. Os apreciadores para se animarem cada vez mais, tomam uma dose de aguardente e pegam um pedaço de tripa que estrala ao ser mastigada, o sal vai substituindo o gosto quase intragável daquela bebida.

            Lá dentro a orquestra já deu início ao baile. Boleros, valsas, além de outros ritmos próprios do sertão como o xote e o baião.

            A poeira sobe, o suor desce, e vão ver mesmo pegar o sol com a mão. Alguns estão dormitando pelas calçadas. Outros debaixo das árvores dispostas na rua principal. O resultado de muita dança, cachaça e tripa assada.

            Mas o amanhecer não foi assim tão tranqüilo. Corria de boca em boca que Dorotéia, a moça mais bonita da cidade, filha do fazendeiro Lauro Alves, pulara da janela do sobrado onde morava, caindo nos braços do sargento da Polícia estadual, Miguel da Silva Bueno, que a esperava sobre um possante cavalo e que, em seguida, saíram em disparada seguindo rumo ignorado.

            Fora, de fato, o que acontecera. Pois grande aglomerado de pessoas defronte à residência do fazendeiro Lauro, mais conhecido por Lauro do Gado, dono de muitas cabeças naquela região, e a Polícia fora acionada para sair no encalço dos fugitivos. O pai de Dorotéia havia proibido a mesma de namorar um policial, qualquer um, não somente àquele jovem, de bigode, bonitão e de corpo atlético, cobiçado pelas moças da cidade, e Miguel Bueno foi justamente se apaixonar pela filha de homem poderoso.

            Luiz Marchante, o delegado, acabara de sair da casa do fazendeiro, e logo foi cercado pelos curiosos, queriam saber quais as providências a serem tomadas.

            - Tudo resolvido. Meus homens vão sair à procura do Sargento e Dorotéia.

            - Mas, delegado, o Sargento Bueno fez isso? Num tem medo de morrer não, o cabra?

            Luiz Marchante, sempre histrionicamente, retirando o seu chapéu do panamá da cabeça, rodando-o com as mãos em sinal de muita segurança, falou:

            - O Sargento Bueno, como é conhecido, pois seu nome é Miguel, é homem de confiança. A carne é fraca, o coração pendeu para o lado errado. O fazendeiro seu Lauro do Gado quer que a gente traga a filha para cá, enquanto devamos prender o rapaz que roubou a menina.

            Um curioso mais afoito, defensor do Sargento, indagou:

            - E o senhor vai prender o jovem militar só porque ama uma jovem bonita, descente e filha desse avarento fazendeiro?

            Luiz Marchante ficou sem jeito. Recolocando o chapéu, pensou um pouco, ficou nas pontas dos pés e falou:

            - Ainda não sei, não sei! Vou avaliar o caso. Caso peguem os dois, a menina Dorotéia será devolvida, é claro, aos seus pais. Quanto ao Sargento estou com vontade de devolvê-lo também, mas será ao Comando da Polícia na capital!

            Um instante para alguns protestarem. Queriam a felicidade da moça e do rapaz. Será que em Verdejante repetiria o amor impossível de Romeu e Julieta?

            - Por que o senhor não ordena seus homens para fazerem de conta que ninguém foi encontrado? Que os fugitivos estavam bem escondidos, deixando-os escapar e serem felizes noutras paragens, longe desse... Desse... Lauro do Gado?

            Foi uma observação feita por alguém que estava por ali. Muita gente atrás de novidade. Últimas notícias. Que coragem da moça, pular daquela altura? Só faz isso quem ama de verdade. E o Sargento? Apará-la nos braços e galopar carregando a sua amada! Parece coisa de romance.

            De repente, vindo naquela direção, um soldado à cavalo em grande disparada.

            Luiz Marchante espalmou a mão, ordenando que o militar pare, desça do cavalo e lhe conte o que viu? O que Sabe? Cadê os fugitivos?

            - Ah, delegado! Não lhe conte!

            - Conte!!!

            Bradou o delegado, afundando de vez o chapéu na cabeça. A multidão cercou os dois. Parecia um formigueiro. Houve empurra-empurra. Era uma confusão  de meter medo. Ninguém entendia nada. O que acontecera? Que estava acontecendo? Por que aquela balburdia? O delegado não tinha pulso para colocar as coisas em ordem, não?

            Ouviu-se um grito que fez todo mundo ficar em silêncio, como um choque elétrico:

            - Calma!

            O delegado Luiz Marchante resolveu por um pouco de subordinação àquele festival.

            - Ou vocês ficam quietos, feito gente de educação, ou eu mando trancar todo mundo!

            Alguns até tomaram essa atitude como piada. Riram. Outros, no entanto, recuaram e procuraram se comportar. O certo é que o delegado Luiz Marchante gostava de aparecer. Por que conversar com o seu comandado ali, no meio da rua, na frente de tanta gente? Se se tratava de caso delicado? Envolvia uma jovem moça e um jovem rapaz?

            Continuou histriônico:

            - Bom! Fala soldado, o que foi que aconteceu?

            O homem, ainda quase sem fôlego, olhos esbugalhados, foi falando cortando as palavras:

            - O Sargento... Delegado!... Se...

            E coçava o cocuruto da cabeça. Dava voltas. Vexado. Emocionado.

            - Miguel Bueno... Ta... Como é que... Vou dizer?

            O delegado ficou impaciente e vociferou mais alto ainda:

            - Desembucha de uma vez, cabra! O que é que está acontecendo?

            Aí não teve jeito. Os presentes como que já pressentindo o que o soldado diria, também, assim como coisa combinada, alarmaram:

            - O Sargento Miguel Bueno... Se matou!?

            O que iria dar tão triste notícia nem precisou falar, apenas balançou a cabeça afirmativamente.

            O delegado também entristeceu. Todos entristeceram. Houve um princípio de tentativa de invasão da residência do fazendeiro. Queriam pegar o senhor Lauro Alves e fazerem logo, já, justiça com as próprias mãos. Pois o consideravam culpado de toda a tragédia.

            O delegado usou do bom senso. Pediu calma a todos e, dirigindo-se a o seu subordinado, indagou, agora com voz mansa e repleta de dor, pois ele como todos do lugar gostavam bastante do Sargento. Chegara há pouco tempo e era o chefe dos militares. Mas conquistara o coração do delegado, dos soldados e de toda a população.

            - E a menina Dorotéia... Que aconteceu com ela?

            O soldado retirou um puído boné com a distinção que significava pertencer à Corporação policial do estado, falou mansamente:

            - Quando nós os cercamos, demos voz de prisão, Miguel a colocou no chão, deu um abraço e a beijou e sussurrou algo. Vimos quando ele levou às mãos ao rosto e deu um grito. Em seguida um estampido de revólver. O Sargento, nosso grande amigo, atirou no peito.

            As pessoas focaram alarmadas. Alguns que conheciam o drama de Romeu e Julieta, logo imaginaram o que Doroteia poderia fazer. Mas o soldado os tranqüilizou:
            - Corremos. Ele estava morto. Pegamos a menina e a colocamos sobre um cavalo e os companheiros trazem-nos. Devagar. Devem estar chegando. O corpo do sargento vem sobre outro animal. Vamos entregá-los ao fazendeiro, Delgado! E o senhor não vai impedir. A menina sã e salva e o corpo do amor da vida dela.

            O 8 de dezembro daquele ano, festivo, logo mais à tarde, a procissão deverá ser algo muito triste para se ver.

            Guerra e Danta já foram para a ponta da rua que dava acesso à cidade. Queriam presenciar o cortejo fúnebre, ou melhor, a entrada do casal de apaixonados: um vivo e pesaroso, outro morto para ser enterrado.

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RESUMO: Prepare-se para o próximo capítulo.

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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.

           

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