domingo, 28 de agosto de 2011

Romance de Domingo


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
  Por William Guerra*



CAPÍTULO XXII

         Guerra caminhou sozinho pela rua, mãos nos bolsos do calção. Pensava no padrinho, na sua desdita. Como seria o falatório das pessoas. Cidade pequena, nada para fazer, aí os mexericos se multiplicam. Tinha que fazer alguma coisa. Mas o que? Nada! Nesses casos não há como solucionar somente com palavras. Ações, talvez. Quais? Não! O caso seria devastador. Assim como o estouro de uma boiada, sem controle; como o arrombamento de um açude, as águas levando tudo que encontra pela frente. A desgraça estava feita. Basta um pedacinho de mentira para que se torne qualquer assunto indesejado – em especial sobre mulher tendo caso com home, imagina com o padre da comunidade! – num gigantesco falatório da maldade. As pessoas vão acrescentando coisas, aumentando, até que, passado algum tempo, a situação seja de incômodo e conseqüências outras virão. Que fazer? Perguntava-se o afilhado do Padre Benedito Basílio Alves.

         Subiu os batentes altos da casa do seu avô, Adrião Bezerra. Na porta deu de cara com Vicência, sua tia. Isto é, tia de criação, se é que se pode ter uma parenta como tia de criação. Sim, pois Vicência foi criada por seu avô, desde o primeiro dia de nascimento. Irmã de Nhá, sua mãe. Cresceram juntas. Vicência é que quem faz todo o serviço da casa. Ainda bem jovem. Sua mãe, mulher de Adrião Bezerra já faleceu há alguns anos. Adrião Bezerra ainda tinha outro filho além de Nhá. Chamava-se Adrião Bezerra Filho, que todos o conheciam apenas por Adriãozinho0. Foi embora para outra cidade distante, nunca mais mandou notícias. Quem sabe um dia apareça de repente?

         Vicência abriu a porta, Guerra foi abraçar a avô que se balançava na sua tipóia de sempre. Quando o viu fez uma festa. Adrião Bezerra queria muito bem a este neto. Não mais que a João batista, mas é que este vivia com problemas. Problemas de menino. Coisas de criança. Como o pai era severo demais e a mãe sempre a lhe passar a a mão na cabeça, ele, Adrião Bezerra tomou a responsabilidade para si para orientar o garoto na verdadeira estrada, no caminho do bem. Era uma espécie de meio-termo; nem tão rígido, mas também não muito bomzinho demais.

         Foi sentando-se na rede e exclamando:

         - Vem de lá um abraço, Guerra! Estava com saudade do meu neto preferido.

         E ria mostrando os dentes que começavam a ficar amarelos. Falta de escova? Fumo. Nestas paragens as pessoas mais antigas costumam fazer a higiene bucal com polpa de juá. Nem sabemos se era o caso de Adrião Bezerra. Na verdade ele ria para valer abraçando o Guerra. Que ficou com os olhos marejados.

         - Di9z filho, o que o traz aqui a esta hora da manhã/ Não foi com seus amigos se banhar na lagoa?

         Perguntou, enquanto se equilibrava melhor na rede, indicando uma cadeira para o pequeno neto.

         - Nada não. É que estou com um troço aqui dentro de mim apertando...

         Disse, ao mesmo tempo enxugava a vista com as mãos.
         Adrião Bezerra alisou a barba branca. Seus olhos azuis miraram o menino. Descobriu que sofria. Tão pequeno e já tem que se preocupar com coisas dessa vida? Mandou que Vicência trouxesse um copo com água, ordenou que Guerra o bebesse. Depois, com calma, olhando para  a rua deserta. O sol cobria a areia daquela rua antiga, e, com atenção, Adrião Bezerra vislumbrou, do outro lado, como os raios penetravam nas árvores seculares enfileiradas que, mais tarde, ofereceriam uma sombra amiga aos que precisassem de descanso. As folhas dançavam pela ação de pouco vento que soprava naquela hora, e os reflexos pareciam pequenas gotas de água assim vistas de longe. Mistérios da natureza. Pensou.

         Para desatar o nó do coração daquele seu neto de apenas doze anos, indagou com acentuada animação:

         - Que aconteceu Guerra! Você é o ás da lagoa, o rei da rua, o menino mais esperto de Verdejante, querendo fraquejar? Conta para o seu velho amigo e avô o que se passa que nós dois juntos resolveremos?

         O menino até que esboçou um riso sem graça. Mas como também não era de ficar só no terreno das lamentações, foi direto ao ponto:

         - É sobre o meu padrinho, padre Benedito...

         Adrião Bezerra pegou de uma caixinha que se encontrava debaixo da rede. Retirou um charuto que o padre Benedito lhe havia dado de presente. Ordenou que Vicência lhe trouxesse uma xícara de café. Satisfeito, perguntou se o menino também queria café. Respondeu que não com a cabeça. Acendeu o charuto. A fumaça rodopiava na sala. Na parede uns bibelôs feitos de barro, mas bem pintados: desenhos de frutas e uma linda jovem segurando um cesto com flores. Comprados em Canindé, quando foram pagar promessa Adrião, a mulher e os filhos há muito tempo atrás. E mais em cima uma cruz e Jesus pregado nela. Toda casa tinha um crucifixo daqueles e, no quarto de dormir, um oratório para as orações diárias.

         - Que é que tem o padre Benedito Basílio Alves?

         Perguntou olhando nos olhos do menino. Queria antecipara uma resposta e qual o assunto que o afligia sobre o Vigário, padrinho muito querido do neto.

         - O povo fala na rua que Mercês está para ter bebê e que é filho dele....

         Adrião Bezerra deixou passar uns instantes. Chupou o seu charuto com mais força. Pegou a bengala inseparável e ficou de pé sem dificuldade nenhuma. Deu alguns passos. Foi até à porta e sentiu o sol no rosto. Começava a esquentar. Voltou e ficou por trás da cadeira na qual o neto se encontrava. Foi falando:

         - Primeiro, Guerra, isso é uma grande mentira. Segundo não é assunto para deixar você atormentado. Uma criança tem mais é que brincar e se divertir e estudar. Terceiro, eu lhe pergunto: aonde ouviu essa história?

         Guerra também ficou de pé, virou-se e respondeu:

         - Wilson. O pai dele comentava em casa com a mulher e ele ouviu.

         Adrião Bezerra ainda perguntou mais uma vez antes de encerrar a conversa:

         - Ouviu o que?

         - O pai dele dizendo que Mercês está de bucho e que foi o padre Benedito, meu padrinho, quem fez o bucho nela.

         O avô de Guerra sacudiu no meio da rua o toco que restou do charuto. Depois pegou nos ombros do menino e o tranquilizou:

         - Filho vai brincar com os seus amigos. Faz o que uma criança na sua idade tem que fazer. Depois estuda com o seu irmão João Batista. Viva sem preocupação. Essa história está muito mal contada. Deixa comigo que eu vou saber de tudo. Caso alguma coisa tenha fundo de verdade, deixa que os adultos e o padre Benedito resolvam. Você não. Estamos entendidos.

         Guerra fez sim com a cabeça. Mas o avô ainda forçou:

         - Promete que não vai ficar com isso na sua cabeça? E quando vierem lhe dizer essas coisas responda assim: não tenho nada  aver com isso, e mesmo é mentira. Pronto. Prometa que agirá assim?

         Guerra prometeu. Disse que não mais falaria naquele assunto. Mas também pediu ao avô:

         - Só quero que o senhor converse com o meu padrinho e ajude a ele não ir embora de Verdejante... O senhor também promete?
        
         - Sim... Fique despreocupado. Padre Benedito nunca vai sair de Verdejante. Eu prometo...

         E saiu em disparada  encontrar Wilson e Danta.

         Vicência chega perto de Adrião Bezerra. Ouvira tudo, mesmo fazendo uma coisa e outra não pôde deixar de escutar a palestra entre avô e neto. Vicência chamava Adrião Bezerra de pai Adrião. E assim se expressou:

         - Pai Adrião, o que é que vai acontecer agora? Sim porque acho que a rua já deve estar cheia dessa mentira...!

         Adrião Bezerra colocou o chapéu de massa e saiu apressado sem responder à jovem Vicência. Como ia bastante apressado, algo deveria estar acontecendo, suspeitou o delegado Luiz Marchante que cruzava com o ancião.

         - Que está acontecendo, Adrião? Parece que viu o que não devia?

         O homem de olhos azuis, barba branca e que já foi tropeiro e também prefeito de Verdejante, parou e retirando o chapéu, respondeu:
         - Não vi nada. Mas estimaria que o senhor fizesse alguma coisa para justificar o seu cargo e o que ganha para isso. E se não tem ganhado nenhum pelo menos é prestigiado pelo prefeito. Por que não prende o homem que roubou o bode Merlim? E tem mais, nunca mais vá à casa de Nhá, minha filha pressiona-la por nada está ouvindo? Se continuar metendo o nariz onde não deve vai perder este posto de delegado já, já! E passar bem...!

         O delegado ficou sem ação. Que foi que eu disse demais? Pensou lá com os seus botões. Cada uma que me acontece? E foi-se, quase correndo, rumo à Delegacia. Tinha que mostrar serviço. Já muita gente lhe reclamava sobre vários acontecimentos. O coronel Lucas Pinto, o prefeito, lhe chamara a atenção. Tinha que agir.

         Entrou na Delegacia com muita pressa. Bino, o carcereiro, encontrava-se prosando com os soldados. Era uma característica de Bino, ficar com brincadeiras com um e com outro. Isso ainda iria ser muito ruim para Bino, disse de si para consigo o delegado Luiz Marchante. Chamou todos os soldados e ordenou:

         - Vão todos.  Todos os oito e mais o cabo Sabino. À casa de Beija, no Jatobá e prendam um sujeito que atende pelo nome de Jesus. Já combinei tudo com Beija. Não me venham sem o meliante!

         O cabo Sabino, preto musculoso e preparado para quaisquer empreitadas, indagou do delegado:

         - E quem diabo é esse tal de Jesus? O que foi que ele fez?

         Luiz Marchante cortou a conversa pelo tronco:

         - Vá e deixa de especulação! É Jesus e acabou-se!

         O cabo obedeceu, mas antes deu uma olhadela para o delegado que, se estivesse percebido, certamente não teria gostado. Foi um sinal de desaprovação pela atitude que o delegado naquele instante. Primeiro deixa a delegacia desguarnecida. Depois para prender um homem por nome de Jesus, manda nove policiais aramados, ainda por cima. Bino também deu uma opinião, embora os a Polícia inteira de Verdejante já estivesse bem distante da Delegacia.
        
         - Delegado Luiz, por favor, tome ciência, por favor! Foi todo mundo prender Jesus. E quem fica guardando a Cadeia Pública?

         Luiz Marchante retirou o chapéu do panamá e coçou a cabeça. Histrionicamente falou:

         - Arre que eu não pensei nisso! Tenho que ficar aqui até os homens voltarem. Por que você não me falou logo, Bino?

         Bino ria e prosava. Como diziam as pessoas: troçava com a acara do delegado.

         - Como? Chega o senhor passando por cima de todo mundo. Manda os policiais prender uma pessoa que ninguém sabe quem é, mas que tem o bonito nome de Jesus! Não escuta nem o cabo Sabino? Como queria que eu lhe avisasse que bastavam dois soldados para trazer o hóspede de Beija?

         Recolocando o chapéu, Luiz Marchante foi sentar na sua cadeira por trás da escrivaninha de delegado existente naquela sala.

         E subiu o patamar da igreja, Adrião Bezerra também retira o chapéu e entra no templo pela porta principal, faz genuflexão diante do Altar-Mor e senta num banco à direita. Cotó, Tilde e Adofina nem perceberam a chegada daquele homem miúdo, teimoso e sábio, que estava ali justamente para conversar com as três.

         Adrião Bezerra arquitetou um plano para rebater os boatos sobre o padre Benedito Basílio Alves e Mercês. Eram, as três mulheres mais assíduas da igreja, bem conceituadas na cidade. Quando falavam influenciavam os demais. Betas, sim, mas mulheres sérias e trabalhadoras do lugar.

         Adofina, casada com o secretário do Sindicato da cidade, Domingos Freire, vereador e homem respeitado, sua atuação era nos afazeres de casa e rezar. Tilde, dona de casa e casada com Rapozinha, homem de bem e funcionário antigo da Prefeitura. Cotó, moça velha, doceira requisitada e feitora de bolos e suspiros. Filha do fogueteiro seu Lúcio.

         Portanto, as três beatas, assim consideradas porque, segundo a própria população, mais fácil faltar o padre na missa do que as três na igreja. Uma verdade que em muito fazia bem a todos, pois as três rezavam pelos que nunca vinha à igreja rezar. Respeitadas e amadas poderiam levar um assunto adiante, mas também tinham o poder de destruir qualquer assunto no seu nascedouro.

         O plano de Adrião Bezerra estava pronto em sua cabeça. Agora era rezar para que as três concordassem com a sua proposta. Para que as três que se encontravam absortas rezando, cada uma contando as contas do seu terço respectivo, Adrião Bezerra pigarreou de propósito.
         As mulheres se voltaram ao mesmo tempo em direção ao banco de trás. Lá estava com os seus olhos azuis e sua barba branca de papai Noel, o conhecido e popular homem mais teimoso desta cidade de Verdejante.

         Tilde, parando e marcando a conta no terço, indagou:

         - Que novidade, homem. Adrião Bzerra, você aqui a essa hora? Uma alma vai se salvar. Veio rezar por quem?

         Adrião estava de bom humor. Precisava conquistar as tr~es para o seu lado, para o lado do padre Benedito. Tudo que elas dissessem, nem que fosse chamando-o de ateu e herege, desculparia e até elogiaria as suas beatices. Ele riu e retribuiu:

         - Estas portas não se fecham, são os braços de Jesus...

         Adofina concordou:

         - Isso Adrião. Bom que você voltasse a assistir às missas aos domingos. Tem uma grande amizade com o padre Benedito e não freqüenta a igreja?

         O homem concordou com toda delicadeza com Adofina.

         - É. Você tem razão. Vou vê se volto aos velhos tempos...

         Cotó, porém, observou que já era uma grande coisa ele se encontrar naquela manhã no templo de Nossa Senhora da Conceição e São João Batista. Afinal aproxima-se o natal e Maria de Dodô, do outro lado, perto da imagem do Senhor Morto, aprontava o Presépio. Sozinha. Não queria a ajuda de ninguém. O padre lhe autorizava e ela gostava assim. O mérito da beleza da manjedoura que representava o lugar onde Jesus nasceu era de sua responsabilidade.

         A doceira observou:

         - Adrião, você mora tão pertinho, devia freqüentar mais a igreja; Dá exemplo para os outros homens que também estão distantes de Deus...

         Solícito e com um riso permanente respondeu:

         - Isso mesmo. Podem contar comigo. Estou de volta à igreja. Não virei lá algum domingo perdido como antes, não. Virei todo domingo e, na medida do possível, durante a semana também.

         Parece que estou ganhando as três para o meu lado. Pensava. Aí aproveitou do momento em que as mulheres lhes davam atenção, puxou o assunto: Mas com muito cuidado, como se estivesse cuidando com vidro fino para não quebrar.

         - Senhora. Na verdade estou aqui para conversar um delicado assunto com vocês...

         As beatas viraram novamente as respectivas cabeças para trás. Deixaram os terços de mão. Pararam de rezar. Benzeram-se. E, curiosas, queriam saber do que se tratava imediatamente.

         Adrião Bezerra não se fez de rogado e satisfez aquela curiosidade tão peculiar nos habitantes de Verdejante, principalmente nas três freqüentadoras diárias da igreja pór várias vezes durante o dia.

         - Bom. O padre Benedito Basílio Alves, nosso amigo, Vigário há muito tempo servindo à nossa comunidade, está em apuros...

         Arregalaram os olhos, olharam uma para a outra, até a do meio saiu da frente para s as duas das pontas também se encontre-olharem. E cada uma pensou a mesmas coisas dentro de si mesmas sem pronunciarem palavra alguma: o padre Benedito estará doente? Fez alguma coisa que n ao devia? Ou é o assunto da empregada?

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RESUMO; O que falta acontecer na pequena Verdejante? Coronel Chico Pinto entra em cena. O coronel Dito sdaldanha, também. Como vai se sair padre Benedito desse falatório que vem por aí? Só lendo os próximos capítulos para descobrirmos. Nem eu que escrevo a história, sei... Já pensaram?

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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.

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