domingo, 7 de agosto de 2011

Romance de Domingo

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
  Por William Guerra*
CAPÍTULO XVII

            O dia de Nossa Senhora da Conceição naquele ano foi muito triste. O povo, em peso, passou o dia em frente ao sobrado de Lauro do Gado. As pessoas queriam ver a filha daquele homem sem alma. Duro e poderoso. Que mantinha sua esposa e filho agrilhoados em costumes antigos que dividia a opinião da população: uns eram a favor, sim, filho tem que obedecer aos pais, nem que seja na base da chibata! Outros, no entanto, os mais civilizados diziam que isso não era uso adequado para criar os filhos. Filho tem que ser educado com diálogo e compreensão. Afirmavam.

            Mas no meio de toda a gente, havia aqueles que se importavam com o Sargento. Sepultado ali mesmo, sem a presença dos familiares. Contudo, foi um enterro com quase todos os verdejanteses presentes. Causou admiração. Fora uma tragédia, é verdade, por isso mesmo a comoção tomou conta de Verdejante.

            Os comentários também obviamente que passavam de boca em boca, como uma taça de vinho a ser provado por toda uma reunião de pessoas que comungavam de uma solenidade fraterna.

            - O Sargento amava Dorotéia!

            - E ela também o amava.
           
            - Um amor impossível, ou não impossível mas tinha uma barreira na frente: o dono do gado... o Todo Poderoso senhor dessas terras!

            - Que destino teve esse militar?

            - De longe, caminhando na sua jornada, na sua carreira, talvez um orgulho dos pais que sequer o viram morto...

            - Numa cidadezinha pequena e escondida, nos confins do Nordeste, palco de tão envolvente história de amor que terminou em morte e revolta.

            E assim as pessoas iam comentando, ora culpando um, depois o outro, mudando o ritmo dos acontecimentos, acrescentando passagens que nem aconteceram, e aquilo já estava enorme, feito bola de neve, cenas que poderiam fazer parte de um filme, de um romance de Machado de Assis ou de uma tragédia de William Shekeaspaire.

            Chega a hora da procissão. Os fiéis pesarosos caminham lentamente. O sol desaba no poente, como para fazer chegar logo a noite, vestindo o mundo de um luto de pura resignação.

            Antes dos vivas à santa protetora, Padre Benedito Basílio Alves sobe o púlpito, que mandara colocar fora da igreja de propósito, e pronuncia um breve mas sentido discurso:

            - Amados fiéis. Não me deixa o momento doloroso pelo triste acontecimento de hoje dizer outras palavras, senão advertir o senhor Lauro do Gado que ele praticou um crime. Se estiver me ouvindo, senhor ouça com atenção! Se não estiver ouvindo, quero que saibas que Deus não o perdoará. Ceifou de uma vez, com golpe de desumanidade extrema, duas vidas que se completavam no amor! Sua filha nunca mais esquecerá a cena em que o seu amado atirou contra o próprio coração aos seus pés, mostrando para o mundo que o amor existe. O sargento Bueno, rapaz jovem, responsável, amigo, sincero, que todos daqui já o tinham como verdejantense, deixa este mundo pela intolerância do senhor que não sabe o que é amor, nem nada! Vou adverti-lo de que não se intrometa mais nos assuntos que não lhe dizem respeito, principalmente daqueles que lhe são prestativos, porque eu, de minha parte, o risquei da lista dos amigos que tenho nesta querida cidade. Podes continuar frequentando a igreja, ela é para todos, mas fique certo que não enganarás a Deus e nem a mim. Por tua soberba e falta de compreensão. Queridos paroquianos, rezemos nessa hora derradeira da festa de N. S. da Conceição pela alma do nosso amigo Sargento Bueno e pela vida de nossa irmão Dorotéia, que precisa agora, mais do que nunca, do nosso irrestrito apoio na fé.

            Foi delirantemente aplaudido, demonstrando assim que todos apoiavam a sua palavra. Não houve vivas à Padroeira. Baixaram a bandeira que havia sido hasteada há oito dias e todos voltaram para suas casas, mas muitos ainda se dirigiram para a frente da residência de Dorotéia.

            Pela tarde aconteceu a apuração dos donativos angariados pelas duas moças que concorriam ao posto de Rainha da Festa. Venceu a do cordão vermelho por pouca diferença. Não houve comemoração. Todos se abraçaram e se cumprimentaram em homenagem ao corpo do sargento que estivera sendo velado na ampla sala de alojamento dos militares na Cadeia Pública.

            Guerra e Danta, como que tomados da mais pura emoção, também estavam tristes. Nem prestaram a atenção na saída dos morcegos das torres da igreja. Não foram ver a despedia de Júlio do Ó com o seu parque, já todo guardado na carroceria do caminhão de Joaquim Relaxado. Nenhum banho na lagoa. Nada. Passarm quase que o dia todo entre a frente do sobrado de Lauro do Gado e a Cadeia, onde todos passaram em frente ao esquife do sargento Bueno.

            Os dois amigos caminhavam lamuriosos pela rua, chutando pedacinhos de pau, pedrinhas e quaisquer objetos encontrados pela frente, como que afastando para longe tanta maldade que existe nos homens. A que ponto chega a arrogância, a empáfia de alguém que se diz dono de todos, dos corações alheios e dos seus respectivos destinos.

            - Homem ruim, esse tal de Lauro do Gado...

            Suspirou Danta. Guerra nada falou, mas Danta continuou:

            - Por que ele não deixou Dorotéia namorar o Sargento, pessoa boa, direita, amiga e simples? Só porque não era rico como ele? Que coisa?!

            Aí Guerra respondeu:

            - Este Lauro do Gado, eu o conheço assim: sempre ia lá ao meu avô Adrião para conversar. Anda a cavalo e dizem que já deu uma surra em algumas pessoas com um relho.

            - É, mas o dia dele vai chagar. Você vai ver...
           
            - Também penso que sim... Quem faz aqui, paga aqui!

            E caminhavam absortos, de repente estavam em frente à Casa Paroquial. O padre Benedito sentado numa cadeira de balanço. Por ali, umas pessoas palestravam desanimadas, era o efeito dos acontecimentos de hoje. Ninguém ousava gritar, cantar, correr, rir ou praticar quaisquer outros tipos de manifestações dos sentimentos, a não ser o pesar, os pêsames, a tristeza.

            O Vigário, ao avistá-los, fez um sinal com a mão chamando-os. Enquanto isso a noite chegou de vez. Os corações das almas dignas se contraíram e pela mágica da força que a fé os sustenta suspiraram silenciosos em prece pelos que se abatem nos momentos de injustiça. Que a justiça seja feita àqueles que se arvoram contra a vida do semelhante pensando somente em si próprios.

            Marcês passou levando na mão um candeeiro recém-comprado a um mascate que passara por Verdejante. O utensílio utilíssimo naquelas paragens, não deu para quem quis. Logo o mascate voltou para buscar mais candeeiros encomendados.

            Danta e Guerra chegaram para perto do padre. Este lhes sorriu um riso acanhado, magoado. Via-se que o semblante do Cura da Paróquia estava entristecido. Sem aquele brilho que lhe era peculiar. Sinal de que sentiu bastante pela tragédia inesperada. Perdeu uma ovelha do seu rebanho, não por desvio de conduta, mas pela sanha cruel de inimigo voraz, bruto e sem nenhum traço de bondade. Parece que Lauro do Gado tem mais afeto para com os seus animais que lhe dão recompensa pecuniária do que mesmo com o semelhante, ou com seus familiares.

            O padre, pegando na mão de um e do outro, Guerra e Danta, os convidou para jantarem com ele naquela noite:

            - Convido-os para jantarem comigo. Façam companhia a este padre acabrunhado...

            Danta falou, quase chorando:

            - Que é isso padre. Ninguém teve culpa da tragédia...

            Respondeu o Vigário:

            - Sei, sei...  Mas Nossa Senhora não teve os regozijos que merecia e nem os viva, a aclamação... O silêncio lhe calou forte no peito lá no Céu, olhando para os que, de uma maneira ou de outra, foram atingidos por tão brutal acontecimento.

            Os três silenciaram por alguns instantes. Na sala a luz fazia os desenhos na parede dançarem. E lá fora, de repente, o vazio, a solidão, o preto de mortalha, a paisagem mais tétrica, uma vida angustiada dentre todos, pois aquele acontecimento fora de tal maneira trazido com imensa dor, que até o ar se impregnou de uma aragem suave e gelada, também se condoera com a morte do mancebo e a desolação de um coração partido, de Dorotéia. Isso se podia ver, avaliar, notar, não se podia apalpar, mas o sentimento do povo e do aspecto da temperatura e da noite era esse: um quase insuportável lamento.... Só lamento...
           
            O padre e os dois meninos foram convidados pela empregada a se dirigirem à mesa. A janta estava posta.

            Coalhada, jerimum caboclo, leite e café. Pedaços de carne assada e arroz ligado. Um regalo que somente o sertão oferece aos seus moradores.

            Padre Benedito Basílio Alves, desabotoou a batina à altura do colarinho, se benzeu, acompanhado pelos dois meninos. Sentaram e passaram sempre em profundo silêncio a saborear a deliciosa comida feita pela fogosa Mercês.

            Fartos, os dois garotos. Ficaram ainda por alguns instantes olhando em direção ao padre. Este quase não tocou em nada, a não ser uma ou duas colheradas de coalhada. Levantando, novamente benzendo-se, foi em direção á sala para a mesma cadeira. Guerra e Danta o acompanharam. Padre Benedito ordenou que puxassem duas cadeiras e sentassem um pouco.

            Obedeceram e ficaram com as pernas bem juntas e as mãos postas sobre o regaço. Taciturnos, se é que duas crianças possam ficar taciturnas. O Vigário, mão no queixo, a fraca luz do farol iluminava o rosto cansado, mas ainda cheio de vigor. Como não havia outros para palestrar, explicou aos meninos de como se dava o seu ponto de vista sobre aquele triste acontecimento.

            - Filhos, a incompreensão humana está em cada um. Cada um que não enxerga o bem, a beleza, as qualidades no outro. Se acontecer de algo o atingir, tal ser humano eivado de incompreensão, ele bloqueia automaticamente o cérebro e só vê desgraça. Quer de qualquer maneira salvar aquilo que pensa que ama. E isso não é amor. Isso é uma doença grave e nociva chamada ciúme.
           
            Fez uma pausa e indagou dos dois meninos se eles estavam entendendo. Acanhados, afirmaram com a cabeça que sim.

            - Lauro do Gado, por ele e por sua maneira de ver as coisas, tendo um bloqueio imenso na cabeça, só tinha Dorotéia para ele, para a sua casa, sua família. Não se lhe passava na mente vê-la com outra pessoa, indo embora morar longe. O mais grave, é que ele poderia até concordar que Dorotéia casasse com um rapaz rico, ainda é a sua intenção, mas que ela não saia do seu lado. É assim um amor de pai para filha, doentio e perigoso. Mas o Sargento Bueno, lá de fora, pobre, simples militar, não causava naquele homem louco pelo vil metal nenhum sentimento de afeto, amizade, consideração. Para ele um militar, seja detentor de qualquer patente, era um joão-ninguém. Lauro do Gado é mau. Pessoa não associável que só pensa nele mesmo.

            Guerra e Danta estavam extasiados com aquele relato ou descrição da personalidade do pai de Dorotéia. Como o padre entende a alma humana!

            - Olha garotos. Estou dizendo isso mas não é para que se atirem pedras no Lauro do Gado, não. Apenas para que entendam melhor o temperamento dele, saibam como se deve lidar com àquela pessoa esquerdista, não no sentido de sistemas de governo, mas que só pensa positivo para ele, para os demais ele é negativista. Fez a maior besteira da vida dele. Agora, nem tanto, mas daqui a alguns anos, quando perceber que a sua filha definha num sofrimento profundo, vai se arrepender e será tarde demais. Os que vivem em volta de Lauro do Gado não têm vida. Não sabem o que é sequer um ato ou gesto de amizade. Dorotéia, menina bem criada, claro, mas fechada, agrilhoada, sem sentir nenhum prazer que a vida oferece. Não experimentou as coisas do mundo para, depois, ela mesma saber se defender das maldades que se lhe ofereceriam.

            Outra pausa. Mercês transitava na casa com o candeeiro. Arrumando uma coisa e outra, fazendo hora para ficar sozinha com o padre. Este lhe pediu que trouxesse um gole de café quente. Indagou se os garotos também queriam café. Não. O padre ainda perguntou se os pais deles sabiam do paradeiro dos dois. A empregada anunciou que um emissário viera até a calçada e ela explicou que eles ficariam para o jantar.

            Depois de tomar um café requentado na chapa, em panela de barro, Padre Benedito continuou:

            - Sabem o que vai acontecer com Dorotéia?

            Ambos arregalaram os olhos, agora com os braços cruzados sobre o peito, imóveis, aumentando o interesse naquela conversa de um palrador só.

            - A moça, coitada, vai ficar num quarto. Envergonhada e impressionada se culpando pela morte do amado. Nunca mais nós a veremos. Isso é próprio de casos dessa natureza. A sociedade ainda não absorve com naturalidade um acontecimento assim, onde duas criaturas, apaixonadas, fogem. O sistema familiar arcaico quer que se puna isso, e ainda vai perdurar por muito tempo, mas tenho fé em Deus que isso um dia vira fumaça. Vai ter que acabar. Deixa o amor ser livre. Ame qualquer um, desde que se sinta feliz. As convenções, os preconceitos, a hipocrisia vai ter que dar lugar ao amor pleno, descontraído e belo.

            Como pode, palavras vindas de um representante da Igreja Católica, justamente Ela que inventou o casamento e instituíram a castidade, o celibato, que se case perante Deus ambos os noivos completamente virgens? Quanta visão de futuro encerra o cérebro pensador daquele padre? A Igreja que diz que é pecado o sexo antes do casamento?

            Guerra arriscou uma pergunta, pelo que ouvia pelas ruas das pessoas adultas:

            - Padre, um homem e uma mulher têm que ser casados de papel passado para poderem ficar juntos e serem felizes?

            O Vigário rio de leve. O que seria dos adultos se não fossem as crianças com as suas verdades?

            - Sou padre. Tenho que obedecer às Leis Canônicas. Mas não acho justo que só se aceite um casal se tiver assinado um papel no Cartório ou tenha se ajoelhado diante do altar benzido por um padre, não! Sou adepto da liberdade. A felicidade não está nas convenções, está nos corações dos homens. Se um homem ama a uma mulher e é correspondido, que vivam juntos e que todos nós os abracemos. Tão simples. Para que complicar? Daqui a algum tempo isso será possível. Hoje, em plenos anos 40 deste século XX, não! Temos que conviver com casos trágicos que nem o de Dorotéia e o sargento Bueno. O que me entristece é que uma boa parte do povo dá razão ao Lauro do Gado. Cotó, Adofina e Tilde, com certeza, não?
           
            Riu. Não as culpava. Eram costumes arraigados na sociedade provinciana dos tempos dos coronéis. Mas de sua parte, mesmo obedecendo certos dogmas que lhe contrariavam, pela fé que tinha em Deus, não nos que fizeram as leis da sua Religião, procurava minorar as conseqüências de tão retrógradas intolerâncias.

            Os meninos, satisfeitos, e apesar de que criança não se importa muito com coisas de adultos, saíram e foram cada um para a sua casa, nem se lembraram de brincar no meio da rua sob a luz espetacular de uma lua sempre renovada.

            O padre fechou a porta. Os garotos perceberam que a empregada não fora embora para a sua residência. Aquilo que o povo falava estava mais claro que o dia.

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RESUMO: Passados os momentos de grandes emoções, chega o fim do ano, começam movimentos politiqueiros e o inverno. Vamos acompanhar os próximos capítulos para entendermos toda essa trama?

  
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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.


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