quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Romance de Quinta


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra

  Por William Guerra*


CAPÍTULO XXVII


         Era véspera de Natal.
        
         A Lapinha na igreja, feita caprichosamente por Maria de Dodô, estava sendo visitada pelos verdejantenses. Todos, sem exceção, da zona urbana ou da zona rural, vinham olhar por alguns instantes da bela Lapinha. Uma verdadeira obra de arte. E ela, Maria de Dodô estava sempre por perto, como que vigiando os intrometidos que tentassem tocar num objeto, no menino Jesus, ou nas plantinhas que havia plantado num pequenino córrego. Não se sabia como ela fazia aquela engenharia de ter sempre um filete de água correndo por ali. Era segredo da moça velha. Uma verdadeira obra de arte. Ficava feliz quando havia um elogio.

         Danta e Guerra lá estavam há horas, não se cansavam de ver aquele Presépio, mostrando quase que fielmente onde nascera Jesus, entre os animais, numa barraquinha feita de palha, e, ali mesmo, ainda bebê, recebera a visita dos três reis Magos que vieram do Oriente.

         Guerra ficava pensativo. Por que essa época do ano é tão triste? Tudo era um toque de melancolia, um sentimento de piedade. Por quê? Se era para festejar o nascimento do homem que veio para salvar a humanidade do pecado, então se entoavam músicas tristes? Um Papai Noel que enganava as criancinhas, principalmente as mais pobres? Alguma coisa estava errada. Daqui a algum tempo, com a morte de Cristo, vai se celebrar a Semana da Páscoa, aí, sim tudo alegre. Se pega Judas e o estraçalham, depois de enforcá-lo e haverá bebida, muita carne e bebida. Guerra não entendia essa contradição: tristeza pelo nascimento do filho de Deus, enquanto contentamento na sua morte.

         Hoje à meia-noite celebra-se uma missa que chamam de “missa do galo”. O povo todo iria àquela celebração. Ao as visitas à Lapinha se intensificam. A iluminação por dezenas de velas dá um aspecto mais triste ainda ao nascimento do menino Jesus. Mas a fé aumenta na medida em que percebe-se o apelo na mensagem daquela representação estática e sugestiva, saída das mãos e da astúcia da moça velha Maria de Dodô.        

         Os dois amigos, Guerra e Danta, não se cansavam mesmo de mirarem com todo vigor à Lapinha. Cresceriam com aquela imagem gravada para sempre na retina.

         Danta chama o amigo:

         - Vamos ali na praça, tem uma barraquinhas que vendem quebra-bucho.

         Guerra concordou e saem. A noite se aproximava depressa. Escurecia. Os candeeiros eram acesos, as lamparinas e os faróis. Nos postes de madeira penduravam-se as lâmpadas de azeite, era a iluminação pública.

         Chegaram a uma mesinha onde dispostos com muito asseio, bolos de milho, de batata e de grude para o freguês que se habilitasse a comer um, ou uma simples fatia. Na Noite de Natal aquilo se chamava “quebra-bucho”. Está aí uma pergunta que não quer calar:

         - Por que dão esse nome aos bolos que são assados hoje? Quebra-bucho?

         Perguntou com admiração o menino Danta.

         Guerra tentou explicar:

         - Quer dizer quem comer um pedaço desses bolos, vai ficar de bucho inchado, isto é, de bucho quebrado!

         Danta riu e completou:

         - Já entendi, passa a noite peidando!!!

         Os dois riram, descontraídos, e assim caminhavam os dois garotos. Pararam numa banqueta mequetrefe. Pobre em si, mas sobre uma pequena mesinha improvisada, um homem bancava o caipira. Uma latinha de manteiga, dentro um dado e na mesa um quadrado dividido em seis partes, cada parte numera de 1 a 6, a mesma numeração de pontos que contém um dado. Fichas feitas de sola, de tampinhas de Coca-cola, pedaços de cabaça, e alguns tostões dispostos ao freguês como chamariz. Arrisca e corre o risco de ganha-las.

         Mas os meninos ficaram pouco tempo naquela mini-banca, foram vê as demais. Aqui havia uma venda de café e aluá. Olha que interessante! Aluá e café. Mas, caso o freguês desejasse algo mais nessa noite de Natal, poderia comer tapioca de goma, pão-doce, bolacha fogosa acompanha do café, ou, se preferi, o freguês tem o aluá.

         Assim passaram pelas barraquinhas, paravam em cada uma, via as novidades e saíam. Já a noite avançara. A hora da missa do galo se aproximava. Daqui a pouco os meninos tinham que dormir e realizarem seus pedidos ao papai Noel. Danta indaga do amigo:

         - Que você vai pedir ao velhinho neste ano?

         Guerra responde que não pede nada. Não é mais besta para acreditar nessa história de Papai Noel. Isso é uma invenção para prender as crianças em suas redes.

         - Mas ano passado você ganhou um presente, lembra?

         Argumenta o menino Danta. Guerra rebate:

         - Foi, uma tigela lavrada com uma manga dentro. Foi meu pai quem a colocou debaixo da minha rede, homem!

         Danta continuou:

         - É. Eu ganhei um carrinho de pau, feito por Janoca Pade, pai daquela menina Francisca.

         - E daí? Foi seu pai quem mandou Janoca confeccionar o carrinho.

         Ainda continuaram nessa discussão por muito tempo. Voltaram à Lapinha, perderam os lugares privilegiados. Agora tinham que se contentar lá por trás da multidão, até que fosse saindo u7m a um  do fiéis para poderem voltar o local bem na frente, próximo mesmo do Presépio, de onde ficavam deslumbrados com aquela encenação de imagens sem vida.

         Durante a missa do galo, aconteceu um trágico episódio. Seu Lúcio fogueteiro, que condicionava os foguetões para as festividades da igreja, e ele mesmo os soltava, esqueceu o tição de fogo perto dos potentes explosivos foguetões, de repente pegou fogo em tudo e o estopim foi ensudercedor. Uma correria desenfreada. Gente para todo lado. Ninguém entendia nada. Parecia uma guerra, tiros de jagunços invadindo Verdejante.

         A Policia foi acionada tendo à frente o delegado Luiz Marchante.

         - Que diabo está acontecendo, seu Lúcio?

         - Nada não. Foi somente uma faísca de nada e fez todo esse estrupício!

         Justificou seu Lúcio, ajuntando o que sobrara dos foguetões. A missa do galo, naquele ano, ficou sem ouvir os estampidos cada um na sua vez. Porque o pipocar dos danados pelo chão, antecipou qualquer aviso de que Jesus acabara de nascer.

         O que causou hilariante cena nesta noite, quase causa uma tragédia de proporções enormes. A sorte é que, sequer a missa havia começado, mas imagina se fosse à hora em que o povo sai da igreja e povo todo o pátio em frente, local das explosões?

         O delegado deixou a sua recomendação:

         - Vê se o senhor tem mais cuidado com esses foguetões. Basta solta-los na hora exata. Antecipou o tição para acender os estopins dos bichos, viu no que deu? O tição tem que ser trazido no momento exato que o senhor for fazer a foguetada.

         Seu Lúcio balançou a cabeça dizendo que sim, estava certo. Quando o delegado deu as costas, o homem desatou a rir. Achou bastante engraçado o pipocar de tanto foguetão pelo chão.

         O dia amanheceu festivo na comunidade de Malhada Vermelha. Muita gente. Pessoas vindas de toda parte. Até o Bispo já se encontrava por ali, acompanhado do prefeito de Verdejante, demais autoridades e, com muita alegria, padre Benedito Basílio Alves o mentor da grande idéia de fazer aquele empreendimento que ficaria para sempre para a população: um Alambique, fábrica de cachaça!

         Os habitantes de Verdejante. Em especial da zona urbana, veio em peso prestigiar a inauguração. Uns vieram a pé, imagina, mais de três léguas de veredas, a estrada que apenas se abria para a passagem de carroças e o velho caminhão de Joaquim Relaxado. Este deu várias viagens, pois deixava um carregamento de gente, voltava para buscar mais pessoas. A cavalo, em carros de boi, de toda maneira veio homens, mulheres e meninos àquela festa de instalação do Alambique.

         Não podiam faltar Danta, Guerra e Wilson. Numa das viagens do caminhão de Joaquim Relaxado, eles aproveitaram e deram um jeito de também se fazerem presentes à comemoração, a despeito dos pais do três garotos também estarem na mesma localidade.

         Lúcio Fogueteiro soltava um rojão, vez em quando, anunciando a concentração. Era sempre assim em Verdejante. Qualquer acontecimento, qualquer anúncio, fazia-se com fogos.

         E o vai e vem das pessoas era algo impressionante. Casais de namorados. Velhos e crianças misturados a animais que também iam e vinham. Os vendedores ambulantes aproveitaram para se instalarem com as suas vendas. Uns até trouxeram o que sobrara de ontem, bolos e refrescos. Não podiam faltar as famosas mesinhas que ofereciam aguardente, que ainda não era a Malhada vermelha, mais conhaque de alcatrão de São João da Barra.

         De repente viu-se uma correria danada. Era a hora que se daria a inauguração. Todos se aglomeravam em volta da entrada da casa onde funcionaria a fábrica de bebida Lá estavam o prefeito, Coronel Lucas Pinto; o Coronel Chico Pinto, seu irmão, o Juiz de Paz, Doutor Severino Conrado, o delegado, Luiz Marchante, o Bispo da Diocese e o padre Benedito Basílio Alves. Mais algumas personalidades como o professor João Batista e o líder local, de Malhada Vermelha, senhor Raimundo Silva.

         As primeiras palavras, naturalmente, foram pronunciadas pelo padre Benedito:

         - Autoridades presentes, às quais saúdo através da pessoa do Senhor Bispo. Meus senhores e minhas senhoras. Estamos aqui para realizar um sonho acalentado desde os mais remotos anos. Esta localidade, com este açude e terras propícias para a plantação de cana, pode ser, a partir de hoje, um celeiro de oportunidades para muitos que estão por aí à cata de um trabalho. A cachaça Malhada Vermelha, até que enfim, vem de se tornar uma realidade.

         E exibiu, levantando acima das cabeças das pessoas, um litro com o conteúdo dentro, tampado com uma rolha feita de um pedaço de sabugo de milho. Ainda não haviam chegado as famosas rolhas de cortiça.

         A multidão delirava, aplaudindo, não as palavras do Vigário empresário, mas a “branquinha” que enchia o litro até o gargalo.

         Continuou:

         - Agora passo a palavra ao Senhor Bispo para dar como inaugurado este Alambique de Malhada Vermelha.

         O chefe do Cura da Paróquia de Verdejante, com voz sonora e forte, mãos postas, com sua batina preta, o solidéu roxo no cocuruto, ficava nas pontas dos pés, pois era um pouco baixo, dizendo:

         - Queridos irmãos! É para mim, motivo de grande emoção, poder cortar a fita que dará como inaugurado este aprazível recanto de fabricação de uma bebida bastante conhecida em nosso meio, que, no futuro, tenho certeza, será exportada! Está de parabéns o padre Benedito Basílio Alves e estão de parabéns todos que fazem este bendito sítio que possibilitou a instalação desta destilaria! Abençôo esta casa em nome do Pai, do Filho e do espírito Santo!

         A multidão exclamou:

         - Amém!

         Aplausos. O sacristão Manoel Dantas ofereceu a água benta, enquanto o Bispo cortava a fita de inauguração, e saiu, acompanhado de muita gente, molhando com algumas gotas o ambiente com a milagrosa água. Os curiosos vinham atrás. Foi uma empurra, empurra dos diabos. Quase atropelam o Senhor Bispo. Este, parando na bica de onde escorria a aguardente ainda quente, mas novinha em folha, aparou num copo de vidro decorado com bolinhas vermelhas e bebeu o primeiro gole. Fez uma careta, pediu pelo amor de Deus um pedaço de alguma coisa para mastigar, queria tirar o gosto. Não se sabe se por milagre ou prevenido mesmo, um homem, com cara de quem tomou já algumas, ofereceu ao Reverendíssimo uma banda de limão. Agradecendo, o Bispo o espremeu entre os dentes, fazendo mais careta ainda. Cuspiu à moda dos que ingerem esse tipo de bebida e ficou todo arrepiado. Mas não reclamou. Riu e ordenou que todos fizessem o mesmo.

         Mas houve um pequeno incidente. Seutonho Moreira, fazendeiro de boas terras no município de Verdejante, mais precisamente sítio Água Fria, estava presente. Amigo do padre Benedito Basílio Alves. Ia ao seu lado e perguntando sobre toda a parafernália ali instalada e que era o motivo da fabricação da aguardente. O Vigário, pacientemente, lhe explicava cada detalhe.

         De repente, o padre Bendito lhe mostrando uma enorme caldeira, onde era depositada a cana para uma etapa naquela fabricação9, Seutonio, mesmo já sabendo do que se tratava, repergunta ao seu amigo padre Benedito:

         - E isto aqui, padre, é uma caldeira?

         - Não Seutônio Moreira, isto aí é um prato!

         O fazendeiro não gostou da resposta, nem da piada. Devolveu à rispidez do Vigário.

         - O senhor, por conseguinte, está pensando que eu não sei das coisas?

         - Não< mas você para burro só falta o rabo...

         O homem ficou encabulado, mas, em cima da bucha, tornou a devolver a insinuação:

         - Então, padre, empreste-me o seu?!

         Os presentes que assistiam àquele episódio. Gargalharam! Que presença de espírito. Padre Benedito ficou furioso e foi preciso a intervenção de amigos e companheiros. Até o Bispo entrou nomeio dos dois. Daqui a pouco os ânimos se abrandaram e todos continuaram visitando cada cômodo e cada etapa no fabrico da cachaça Malhada Vermelha.                
                  
         Danta, Wilson e Guerra também se imiscuíram por ali e, juntamente com as pessoas iam vendo cada detalhe e as explanações dadas pelo padre Benedito Basílio Alves, agora meio chateado com o entrevero acontecido com o seu amigo Seutonio Moreira, de água fria.

         Lá fora Lúcio Fogueteiro soltava as enormes tabocas amarradas a um cipó de marmeleiro, cheias de pólvora, que ribombavam pela redondeza espantando animais e aves que nunca ouviram, até àquele dia, um pipocar no ar, enquanto um forte cheiro de pólvora         queimada se misturava com o forte cheiro de cana destilada. Era o milagre da transformação. Era a engenharia para a fabricação de aguardente 92°.

         Tudo continuou em festa e conversas. Muitos, os mais afoitos, já se embriagavam. Outros iam para a beirada do açude vomitar, os que não tinham o costume de ingeri bebida alcoólica, mas como era de garça...

         O sol já ia bem alto, as caravanas de pessoas montados em cavalos e burros, começavam a fazer o caminho da volta. Outros ficaram até bem mais tarde.

         As autoridades, sempre à frente o Senhor Bispo, foram almoçar galinha caipira com feijão, arroz de leite e muita farofa na residência do senhor Raimundo Silva.

         O curioso, para os meninos que já se morcegavam no caminhão de Joaquim  Relaxado, foi o fato de que todo o tempo da inauguração, alguém batia no chocho sino da Capela de Malhada Vermelha, anunciando o evento, mas que ninguém o escutava, a não ser eles três, Wilson, Danta e Guerra, que foram até lá e subiram na pequenina escada e viram, da janelinha lá de cima, o povo no pátio levantando poeira com suas pisadas para lá e para cá.

         Os três, durante a viagem de volta, comentaram a discussão havida entre o padre e Seutônio Moreira.
        
         Danta dizia:
        
         - Vocês viram, que padre Benedito ficou desconfiado, depois que Seutônio Moreira lhe pediu o rabo dele emprestado?

         Wilson exclamou:

         - Vixe! Vi sim. Dessa vez o padre levou a pior.

         Guerra apenas observou:

         - Foi uma bobagem meu padrinho padre Benedito Basílio Alves tentar desclassificar aquele homem.

         Tudo voltou ao silêncio. Para trás ficava a poeira daquela manhã de 25 de dezembro, quando se deu a inauguração do Alambique de Malhada Vermelha, construído, instalado e administrado pelo Vigário da Paróquia de Verdejante!

         Danta ainda puxou conversa sobre do Papai Noel.

         - Ganhei um apito e um boné.

         Wilson também revelou:

         - O meu brinquedo do Papai Noel foi um pião e uma camisa nova.

         Guerra disse que ganhara um livro.

        
NOTA: Quero pedir desculpas aos leitores, porque algumas palavras ainda saem com algumas letras trocadas, ou outro erro qualquer de digitação. Mas prometemos caprichar mais. E, se Deus quiser, quando essa história for lançada em livro, terá revisão, correção ortográficas e acrescidas de mais alguma coisa ou até suprimido outros tanto. Obrigado pela compreensão.


* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pa

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