quinta-feira, 21 de julho de 2011

Romance de Quinta

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
  Por William Guerra*



CAPÍTULO XII

            Ontem à noite voltou o Coronel Chico Pinto.
           
            O entra e sai na sua morada, de pessoas que lhe vieram prestar solidariedade muito lhe confortou, a si aos seus familiares. O padre Benedito Basílio Alves constituía-se no seu maior confidente. Conversavam trancados num quarto, saíam para o quintal, voltavam à sala de estar. E assim passaram quase toda a noite, que a esposa do Coronel classificou como sendo a “noite da agonia”.

            O dia amanheceu igual a todos os outros dias que amanhecem sem novidade nenhuma. As pessoas acordam, levantam fazem algum asseio e alguns cidadãos, pais de família, vão à “pedra” fazer compras.

            Naquele comércio, há quase de tudo para se comprar: café em grãos, açúcar, feijão, milho, bolo, tapioca, verdura, frutas. Os que possuem maior poder de aquisição, dão uma espichada até o Açougue, comprar um mercadinho de carne. Outros levam uma palha de peixe. Na volta, cada qual carregando um balde ou cesto, passam pela Padaria e compram pães para o café da manhã.
           
            Estavam os funcionários da grande loja de sociedade do Coronel e o comerciante João de Brito, abrindo as portas, quando se ouviu tropel de cavalos, poeira levantar parecendo que um gigante redemoinho passava veloz. Gritaria. Disparos de armas de fogo. Corre-corre pelas poucas ruas de Verdejante. Alguém gritou na porta da residência do Coronel Chico Pinto:

            - Foge Coronel! Os bandidos estão chegando!

            Não houve escapatória, Massilon e mais alguns cabras pararam em frente a casa de Chico Pinto. Houve correria. Gente se escondendo. Um alvoroço nunca antes presenciado em Verdejante. Outra metade seguiu para a loja de comércio. Ali chegando, atearam fogo em tudo, enquanto pegavam peças de tecido e jogavam para a rua. Ninguém sabia o que fazer. O delegado Luiz Marchante não se encontrava.

            Enquanto isso, padre Benedito Alves, com a sua batina preta esvoaçando, vinha feito um leopardo pela calçada. Avistou alguns pistoleiros com espingarda na mão, guarnecendo a entrada da casa do Coronel. Ao avistarem o Vigário, retiraram o chapéu da cabeça, todos, automaticamente, e dobrando os corpos para frente, fizeram uma reverência finíssima ao padre.

            Padre Benedito indagou com fúria na voz:

            - Cadê o poderoso chefão de vocês?!

            Os sujeitos apontaram para dentro da residência:

            - Está lá, vê se pega o Coronel para matar!

            O Cura da paróquia de Verdejante fechou os punhos, empurrou um dos camaradas que atravessara na porta, e foi-se casa adentro.
            Mal amanheceu o dia, os cangaceiros invadiram a cidade. Foram primeiro à delegacia policial e prenderam os soldados, não foi preciso soltar presos, não havia nenhum. Depois seguiu uns homens para a grande oja Chico Pinto/João de Brito e outra parte acompanhou Massilon até à casa do Coronel. Nas ruas as pessoas estavam assim como cegos em tiroteio, sem sabe o que fazer ou para onde ir. Afinal a notícia que se tinha era a de que Massilon invadiria Verdejante na quinta-feira, hoje é quarta.

            Massilon encontrava-se deitado numa rede branca, de varandas, e obrigara o Coronel Chico Pinto sentar num lado, com um pinhal quase espetando seu pescoço. A esposa do político chorava, ajoelhada, pedindo ao celerado:

            - Por Deus, seu Massilon, leve tudo o que é nosso, mas não mate o meu marido!?

            Os filhos de Chico Pinto haviam sido retirados da casa por trás, atravessando a cerca e se escondido em residência de amigos.

            O padre Benedito, chegou bem próximo do cangaceiro, que lhe estendeu a mão e, ao apertá-la, trouxe-a para bem pertinho e a beijou, pedindo a bênção ao Vigário:

            - Sua bênção, padre...

            - Deus te abençoe!

            Padre Benedito Basílio Alves não era homem que temesse qualquer coisa, nem os cangaceiros armados até os dentes. Enfiou a mão direita no enorme bolso da batina, pegou no cabo do seu revólver e ficou assim, puxou conversa com Massilon:

            - Deixa este homem em paz! Vamos para a igreja que vou celebrar uma missa para vocês! Depois da celebração da santa missa, resolverás o que fazer.

            Massilon não se mexeu. Aperto mais o punhal no pescoço do Coronel. O padre o convidou novamente, agora em tom ameaçador. Sabia do perigo que estava correndo o seu amigo. Mas, também, com pessoa daquela qualidade, como Massilon, o negócio tinha que ser na base do ou tudo ou nada!

            - Seu Massilon! Levante-se e chame todos os demais bandidos para irem à igreja! Estou ordenando, não estou convidando. E se não fores por bem, irás por mal!

            Chico Pinto viu o fio de vida que ainda lhe restava se romper. Seria sangrado que nem um bicho bruto, ali, em sua residência, na frente da esposa e do padre Benedito que, parecia, ao invés de ajudar, o estava sentenciando à morte. Mas, não dizia nada, branco que só capulho de algodão, a mercê da crueldade do sanguinário. Sua mulher correu para o quarto, aumentando o pranto, pedindo clemência a Deus.

            Massilon ainda permaneceu por alguns minutos naquela posição, espetando o pescoço do Coronel. Mas de repente, de um salto, ficou de pé e avisou:

            - Está bem, padre. O senhor ganhou. Vamos à missa. Mas terminada a cerimônia, eu venho para sangrar este homem, vale muito dinheiro. Não morrerá baleado, morrerá sangrado.
            Chico Pinto ficou de pé, também, mas com muita dificuldade. Tremia. Ainda não pronunciara nenhuma palavra. Retomando, aos poucos, o ânimo perdido, como era homem de coragem também, conseguiu dizer:

            - Massilon, sei que me matarás. Mas antes que o faça, diz para nós quem foi o cachorro que lhe contratou para tirar-me a vida?

            Já agora mais corado, andando, entre o padre e o Chefe dos bandidos. Massilon não respondeu. Chegando à calçada, ordenou a um dos seus homens:

            - Vai, Tição, chama os homens para a igreja, vamos assistir a uma missa.

            Um cangaceiro, cuspindo de lado uma golda amarela, pois era um mascador de fumo preto, explicou:

            - Pancadão atirou num homem lá em baixo. Matou. Não houve necessidade, mas não deu tempo de a gente impedir...

            Não terminou a frase, Massilon ficou possesso:

            - Cadê o condenado! Não dei ordem para não ferir ninguém? Vou dar-lhe uma surra de facão e amarra-lo num tronco de uma árvore! Tem que morrer de fome e sede! Ai daquele que se meter a besta! Vai lá e amarra o maldito!

            O homem, mal-encarado, suado, ainda comentou:

            - Está caindo de bêbedo, o miserável..

            E se foi cumprir a ordem de Massilon. Padre Benedito se benzeu. Mandou que Manoel Dantas abrisse todas as portas da igreja. No patamar, os cabras deixaram todas as armas e seus chapéus. Entraram no templo e iam, um a um, fazendo a genuflexão diante do Altar-mor. Padre Benedito foi para a Sacristia, vestiu os paramentos para celebrar a missa.

            No banco da frente se sentaram Massilon e o Coronel Chico Pinto e mais outro camarada alto e forte, parecia ser o lugar-tenente de Massilon, ou o segundo mais importante daquele bando. O Vigário manda chamar Masilon à Sacristia. Houve um princípio de tumultuo entre os homens. Chico Pinto aproveitou da confusão e, saindo bem devagar, correu por uma porta lateral e sumiu. Ao voltar, Massilon não encontrou o Coronel Chico Pinto. Riu e disse para o padre:

            - O senhor o salvou, não foi senhor Vigário? Nada não. Outro dia eu volto.

            A missa foi celebrada bem lentamente. Estratégia de padre Benedito Basílio Alves, dá um tempo para Chico Pinto fugir para lugar seguro. Os meliantes assistiram calados à missa. Ouviram o sermão do padre com atenção. Enquanto isso, lá fora, Pancadão padecia em cima de um cavalo, quase a cair, de mãos para trás bem amarradas. Os mais afoitos olhavam das esquinas, pelas brechas das portas e janelas todas as cenas daquela manhã de grande aflição.

            Massilon indagou do padre quanto estava devendo pela missa. Respondeu que aquela era uma celebração em homenagem à sua figura, e que pedira a Deus para fazê-lo renunciar à vida de bandoleiro. Massilon agradeceu, beijou novamente a mão do Vigário e foi embora com os seus homens, saindo pela Rua do Alto, levantando poeira. De repente a igreja estava repleta de gente. Todos queriam saber do padre para onde teria ido o Coronel Chico Pinto. Até mesmo o prefeito, irmão do Coronel desejava saber do seu paradeiro:

            - Diga senhor padre, para onde mandou o meu irmão?

            Sem responde, padre Benedito Basílio Alves, depois de tirar os paramentos e mandar que o Sacristão fechasse novamente todas as portas da igreja, foi saindo rompendo a multidão, em direção à casa do Coronel Chico Pinto.

            Alguém falou com ironia e desdém:

            - Espia! Quem vem acolá feito um burro de cela?

            O povo gargalhou alto. Uma gozação só. Era o delegado Luiz Marchante que, finalmente, dava o ar da graça. Ao esbarrar com o padre e o prefeito, cercados por quase toda Verdejante, bradou, enquanto retirava o chapéu do panamá:

            - Um dos cangaceiros atirou em Rodrigues de Adélia. Morreu na hora. Já estive lá. Muito choro. Não deu tempo prender o criminoso. Mas vou organizar toda a guarnição e mais alguns homens e perseguir o bando!

            Novamente ouviram-se sonoras gargalhadas. O delegado recolocou o chapéu e ficou enraivecido.

            - Estão rindo por quê? Eu não cheguei na hora porque havia ido ao Juazeiro olhar uns animais. Logo que tive notícia do que acontecia por aqui vim correndo!

            Padre Benedito, já em casa de Chico Pinto, explicou para todos que Massilon resolveu antecipar a invasão justamente porque desconfiara que um cabra, o Vento Solto, poderia ter avisado. O Vigário, adiantou ainda, que dissera ao bandido que ninguém apareceu para dizer nada. Caso isso tivesse acontecido, ele, Massilon, teria outra recepção, não uma missa.

            - E ele acreditou?

            Luiz Marchante, o delegado, fez esta pergunta. Padre Benedito respondeu que sim.
           
            - Pelo menos foi a impressão que me deu.

            A mulher do Coronel Chico Pinto apareceu, limpando os olhos constantemente com uma toalha, avançou em direção ao amigo Vigário da cidade, exclamou:

             - Obrigada, senhor padre! O senhor salvou o meu marido! Deus há de recompensá-lo!
            Padre Benedito respondeu com calma, dizendo que não fizera mais do que a sua obrigação. Que ela ficasse tranqüila que Chico Pinto logo, logo estaria em casa são e salvo. O importante era dar um tempo. Vê se Massilon não voltaria, pois foi o que ele prometera. Mas adiantou, olhando fixo para o prefeito Lucas Pinto que se deveria redobrar a vigilância.

            Com todo aquele burburinho se passando em Verdejante, Guerra e Danta se mantiveram atentos: viram quando tocaram fogo na grande loja de comércio; atiraram em Rodrigues de Adélia; e quando o Coronel Chico Pinto saiu pela porta lateral da igreja, subiu num cavalo que o esperava e disparou rumo ignorado.

            Padre Benedito, deixando os familiares do Coronel mais tranqüilos, saiu, se despedindo, iria à residência da única vítima daquele vexame. Queria se inteirar de tudo e confortar a viúva e os filhos. O acompanhou o Sacristão Manoel Dantas. Pelo caminho ia recebendo os cumprimentos das pessoas, pela grande habilidade com que conduziu a situação de constante perigo, não só para o Coronel Chico Pinto, mas também para todos os habitantes do lugar.

            Encontrando-se com o soldado Lúcio, perguntou se a coisa já estava normal na Delegacia. O militar respondeu que sim. Mais na frente, na esquina da farmácia de Seutônio, parou para responder a algumas perguntas de amigos que se encontravam discutindo todo o drama vivido por todos naquela manhã.

            Seutônio, Adrião Bezerra, Afrânio, Inácio, João de Brito, Luis Leite, João de Deus e mais alguns senhores da sociedade verdejantense, que chamaram o Vigário para as explicações necessárias.

            - Bem. Cheguei e vi uma cena dantesca na casa do Coronel. Confortei sua esposa. Fiz um convite a Massilon para que assistisse uma missa, ele aceitou. Conversei em particular com ele na Sacristia, na presença somente de Manoel Dantas. Que Deus me perdoe mas menti. Disse para o Massilon que ele não sairia vivo de Verdejante, caso fizesse alguma coisa com Chico Pinto. Que uns cem homens estavam entrincheirados, na saída da cidade aguardando a sua passagem. Caso nada fizesse, ele poderia ir embora com os seus cabras, naquele momento que haviam matado um dos nossos. Massilon pensou, alguém puxou Chico Pinto pelo braço e o levou para um local combinado, que apontei. A missa transcorreu normal, Massilon se despediu dizendo que voltaria. Mas acho que não volta mais.

            Algumas perguntas mais foram feitas. O padre disse que pretendia ir até à residência de Rodrigues de Adélia. Lamentou o acontecido. Ouviu as explicações de que diziam que a culpa, em última análise, fora do próprio Rodrigues, porque se aproximou demais de onde eles estavam bebendo, rindo, e aí o cabra assassino pensou que ele zombava deles, atirou. Um só tiro o matou.

            Quando padre Benedito e Manoel Dantas chegou à casa do morto, lá já estavam Danta e Guerra, queriam saber de tudo, ver tudo, para comentarem com todos os detalhes os acontecimentos daquele dia de pesadelos para a cidade. Muita gente lamentando, dando os pêsames a dona Adélia. Os filhos também choravam. Uma cena bastante triste. O padre confortou a viúva, apertou a mão de cada pessoa que o cumprimentava, disse que o enterro deveria ser à tarde, ele mesmo celebraria uma missa de corpo presente. Dona Adélia agradeceu.

            E assim foi o dia inteiro. Gente para todo lado, cruzando as ruas e enfrentando seus lençóis de areia. Cada um dizia o que pensava, dava a sua opinião. Havia aqueles que culpavam a política, outros que diziam que a culpa era a falta de segurança, outros mais argumentavam que a violência estava demais no sertão nordestino. Lampião assombrando cidades e povoados, enquanto seus seguidores faziam o mesmo. O governo tinha que fazer alguma coisa. Não o estadual mas o federal. Mas o federal já está fazendo conjuntamente com os estaduais de todo o Nordeste. As volantes perseguiam noite e dia os bandidos. Era uma questão de tempo dariam cabo ao bando sanguinário de Lampião. E quando isso acontecer, este tal de Mssilon botará a viola no saco, abandona o cangaço para não ser pego pelas volantes.

            Danta e Guerra nem foram em casa. Parece que toda a Verdejante não fez almoço naquele dia. Ninguém se preocupava em comer. Não se sentia fome. As donas de casa também cochichavam pelas calçadas. As escolas particulares não funcionaram hoje. O comércio inteiro ainda se encontrava fechado. Nada funcionava em Verdejante, nenhuma repartição. Havia no ar como uma nuvem de preocupação, o terrorismo em pleno sertão, ninguém se sentia seguro a partir daquele acontecimento.

            Os dois meninos saíram por aí, de esquina em esquina ouvindo as pessoas. Entravam em botecos, passavam pelo Mercado público, na frente da Delegacia. Aí pararam por mais tempo, queriam saber a versão dos soldados. Estes, ainda com muito medo, diziam que foram desarmados e trancados nas celas. Os cangaceiros levaram as armas e toda a munição.

            Danta comentou baixinho no ouvido de Guerra:

            - Que vexame!

            Guerra riu. Wilson chegou para andar com os dois. Também ficara apavorado. Disse que lá em sua casa seu pai não deixou ninguém sair. Guerra relatou todos os acontecimentos, aumentando mais alguma coisa, Wilson arregalou os olhos e exclamou:

            - Vixe!

            Agora os três que perambulavam pelas ruas, pelas calçadas, qualquer parte, sempre havia um aglomerado de pessoas a conversar.  Já passava do meio dia. Sequer as doze badaladas Manoel Dantas tocou no sino da igreja. Um dia atípico. Não foi pouca coisa não. Muita confusão, horror, desmaios e uma morte. Diziam os verdejantenses que Rodrigues de Adélia morrera no lugar do Coronel Chico Pinto. Massilon ficara desorientado quando soube o que fizera um dos seus capangas. Chegou a informação, alguns reputando como mentirosa, de que Massilon matara o Pancadão na saída da rua e o atirara no meio da mata. Mas ninguém se atrevia a ir por lá saber da verdade.

            Resolveram os três garotos tomar banho na lagoa, antes do enterro de Rodrigues de Adélia. Chegando no poço das Matutas, encontraram banhistas sentados, em roda, conversando sobre os acontecimentos. Guerra percebeu, pelo que ouviu e sobre o que ele mesmo vira com seus próprios olhos, o quanto aumentavam as histórias na medida em que iam passando de boca em boca. Ora, estavam dizendo que padre Benedito botou o cano de um revólver na boca de Massilon e o obrigou liberar o Coronel Chico Pinto. Outras inverdades foram ditas como as que inventaram dizendo que Rodrigues de Adélia entrou em luta corporal com o sujeito que o matou. Até estavam comentando de que, na igreja, Chico Pinto, para fugir, deu um pontapé na bunda de Massilon e saiu correndo e pulou na cela do cavalo que disparou em busca do sítio peque.

            - O povo não aumenta, inventa.

            Disse Danta, invertendo o ditado onde se diz assim: o povo aumenta, mas não inventa. Guerra e Wilson fizeram um gesto com a cabeça dizendo que sim, aquilo tudo não tinha paradeiro. Dias virão e o povo inventando mil e uma cenas pelos episódios cruéis acontecidos neste dia.

            Mergulharam e, por alguns momentos, esqueceram os tristes acontecimentos. Banharam-se. Notaram que não havia lavadeiras de roupa por ali. Botadores de água com seus jumentos e ancoretas também não se encontravam. Quer dizer, aquele dia foi totalmente fora da rotina habitual do lugar. As pessoas deixavam seus afazeres,, iam para as ruas saber das novidades. Debaixo dos pés-de-figo, aproveitando da sombra que faziam, homens, mulheres e jovens palestravam, cada emitindo o seu parecer, indicando um episódio a mais, outro a menos; acrescentando na dose, diminuindo na textura; pondo a cereja no píncaro do bolo, derramando a cobertura para todo lado.

            Havia até aqueles que discutiam brabos. De longe, não se lhes conhecessem os espíritos pela proximidade de todos, uma vez que Verdejante não tinha mais do que 800 famílias habitando a zona urbana, pensavam-se logo de que estavam brigando. Um pego daqui, outro de lá, mais um de cá, esse dali,,, Maneira que Massilon e seus camaradas deixaram Verdejante em polvorosa. Escapuliu o que tinha sentença de morte, morreu o que não fazia mal a uma mosca. Era esse o pensamento de muitos.

            Já o sepultamento de Rodrigues de Adélia estava, nesse instante, acontecendo, no Cemitério próximo à timbaúba velha. Padre Bemedito celebrou missa de corpo presente. Fez um sermão emocionante. Quando, exatamente, fez o trocadilhos que muitos apreciaram: o cangaceiro veio para tirar a vida de um cristão, errou e tirou a vida de outro cristão, ou: atirou no que viu, acertou o que não viu!

            A família de Rodrigues de Adélia estava condoída, ainda em prantos. Como seria negra a noite que se aproximava. Os  últimos raios do sol de começo de dezembro iluminavam os campos distantes. Daqui a pouco, na hora do Ângelus, a viúva derramaria o seu pranto pela dor provocada por um ato brutal e desumano. O mais terrível era saber que o celerado não teria uma Ave-Maria por penitência. Corria solto por aí, a fazer novas viúvas, deixar outros órfãos neste mundo sem paz.

            Mas o que faziam os dois meninos perdidos no meio daquela gente humilde, pacífica e que pagavam um preço alto pela falta de compreensão entre os homens daquela cidade tão pequena? Que queriam Danta e Guerra ouvir o lamento dos mais idosos, para estarem assim, absortos, de deu em deu, a cata de conversas que sequer entendiam? Isso o que se dá em comunidade onde impera a inveja, a desunião, o egoísmo. A disputa política sem limites, apesar de poucos habitantes, cada um queria o poder, ambicionando os privilégios, as benesses e o apadrinhamento. Este ganhava aqui, perdia lá em cima; aquele ganhava por cái, era derrotado por lá. Um troca, troca sem fim. Sobe e desce. Hoje és tu a mandar. Amanhã serei eu!  Eis o que pensavam as facções beligerantes e, por causa disso, aconteciam as mortes, a tragédia. Verdejante não ficava fora deste quadro de violência e desumanidade. Ainda tendo, como figuras da desgraça pelas desgraças os cangaceiros que andavam perambulando a fazer misérias.

            Danta e Guerra ouviam todos os comentários. Não perdiam nada.

            Sentados numa beira de calçada, foram despertados pelas seis badaladas do velho sino da igreja secular. Manoel Dantas era pontual. Do cume do teto da igreja os morcegos afugentados saíam em procissão, ziguezagueando, queriam sangue, estavam com sede de sangue...

____________________________________________________________

RESUMO: Os desdobramentos da invasão. Espectativa do que poderá acontecer daqui para frente. Os próximos capítulos serão repletos de surpresas. Mil e uma estripulias praticadas pelos dois meninos: Danta e Guerra. Aguardemos.
              __________________________________________________
* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos


           
           

Nenhum comentário:

Postar um comentário