quarta-feira, 13 de julho de 2011

CAPÍTULO X

         As pessoas se apertando, cada vez mais se achegaram para o centro. Queriam saber o que aquele homem esquisito, com nome de índio – ou de cangaceiro? – tinha para dizer. Houve um empurra, empurra, foi necessária a intervenção de padre Benedito para que houvesse ordem.

         - Calma minha gente! Tenham paciência. Não precisa tumultuo. Se não ficar todo mundo quieto, vamos levar este cristão para longe daqui.

         Parece que surtiu efeito. Informados de que poderiam perder o que estava para acontecer, assim como a curiosidade matou o gato, não contrariaram o Vigário. Enfim o silêncio voltou com todos se acomodando como podiam. Agora era só esperar a hora que aquele andarilho, vindo se sabe-se lá de onde, começasse a falar.

         Saindo um pouco do meio da multidão, Guerra puxou Danta pela camisa e comentou:

         - Espere aí, amigo. Que esse bandido tenha vindo parar em nossa cidade, vá lá. Mas como é que ele sabia que estava havendo todo esse parangolé na tenda dos ciganos?

          Danta encolheu os ombros, espichou os beiços e abriu as mãos dizendo:

         - Sei lá...!

         Os curiosos e as três autoridades naquele momento estavam impacientes com a demora do esquisito sujeito. O delegado, retirando o chapéu do panamá, coçando o cocuruto com força, demonstrando raiva, gritou, com a sua voz histriônica:

         - Como é amigo, vai falar ou não vai!? Pensa que nós aqui estamos distribuindo simpatia? O trabalho aqui é de alta responsabilidade, prestes a prendermos um criminoso, e vem o senhor com esse negócio que tem segredo para revelar...! Quem é você, desembucha se não quiser ir para o xilindró!

         Os verdejantenses gostaram da palavra poderosa do delegado Luiz Marchante. Homem sem papas na língua. Às vezes cai do cavalo, mas naquele momento estava sendo muito macho. Houve um ensaio de aplauso para as palavras do delegado.
         - Ta, ta, ta, vou explicar. Sou Vento Solto, apelido, é claro. Fazia parte do bando de Massilon. Desentendi-me com ele, aí fui ameaçado, fugi. Mas primeiro passei por aqui para dar um aviso, ou melhor, contar um segredo...

         E chupava o cigarro feito de fumo de rolo e soprava. Cuspia uma cusparada para longe, parecendo uma cagada de pato. Retornava a sugar a fumaça, soprava e cuspia. Nisso o tempo passava. O prefeito, magro que parecia que a barriga ia recuar até às costas, com sua voz fanhosa, advertiu:

         - Cabra, se você mentir aqui perante nós, vier com conversa fiada só para nos enganar, pensando que vai tirar algo dessa gente daqui, pode tirar o cavalinho da chuva. Mando te prender, amarrar e dar uma surra para aprender a respeitar a terra dos outros e seus habitantes! Estamos combinados?

         - Assim é que eu gosto...

         Foi a resposta do homem forasteiro, enquanto empurrava para cima o mais grosso tufo de fumaça que pode sair de sua boca de dentes estragados e acabou o cigarro, o jogou ao chão e pisou em cima, como para apagar de vez a bagana sem mais serventia, dava a impressão que esmagava a cabeça de um réptil rastejante.  

         Um circunstante, que estava lá por trás, levantando a cabeça para que sua voz fosse ouvida na frente, já possuído de certa revolta com aquele vai-e-vem sem que se chegasse a lugar nenhum, falou:

         - Acabem logo com essa porcaria de papo furado! Coloca esse vassalo detrás das grades, que aí ele diz a que veio!

         Aplauso. Assovios. Risadas e novamente aquela algazarra que, mais uma vez, padre Benedito tentou acalmar, sendo que, deste instante, foi mais difícil porque houve alguns protestos. Depois de muito pedido e explicações, aquela reunião que já durava mais de três horas voltou ao silêncio desejado, sem, antes, João de Deus, um comerciante do lugar, indagasse:

         - Padre Benedito, Massiolon que este sujeito está a se referir é aquele coiteiro de Lampião? E que mora pras bandas da Paraíba?

         - Exatamente!

         Respondeu o Vigário, retornando ao centro, para ouvir o bandoleiro falar. Toda essa confusão estava acontecendo dentro da tenda principal dos ciganos, gentilmente cedida pelo chefe, mas que já se ouvia palavreado ramani – dialeto próprio dos caló -, como que não estivessem gostando da demora demasiada de toda a balbúrdia, a hora do almoço se aproximava.

         - Bom, sou alagoano. Cedo entre para o bando de Lampião. Andei pela Paraíba, e por causa de um rabo de saia, fiquei por lá. Fui perseguido e aí me juntei ao bando de Mssilon...

         Começou, finalmente, a falar o Vento Solto. Mas ainda interrompeu sua falação, queria beber um copo d’agua. Arranjaram-lhe e, depois de limpar os beiços com a manga da camisa, continuou:

         - Numa noite chegou ao acampamento, dois homens a cavalo, conhecido do chefe. Apearam-se e foram para um canto escuro conversar com Massilon. Eu, toda a vida fui bastante curioso, segui os três e fiquei escondidinho, no escuro, abaixado por trás de uma moita, ouvi todo o papo.

         O sujeito estava sentado narrando essa história que, a partir daquele momento, começou a despertar o interesse de todos, principalmente do prefeito. Mas levantou-se, fez alongamento esticando os braços para cima, o chapéu de couro caiu da cabeça, apanhou, recolocou, deu alguns passos.

         - Mas com seiscentos diabos, homem! Será que você não vai terminar logo de contar esse segredo não?! Fala de uma vez, seu, seu meliante!

         Esbravejou o delegado Luiz Marchante. Mas aí já foi o próprio prefeito quem pediu calma ao delegado:

         - Espera Luiz, espera. Deixa o homem tomar fôlego. Pode continuar meu chapa.

         - Ouvi bem quando um disse: “Nós queremos que você dê fim ao Coronel Chico Pinto, da cidade de Verdejante, no Rio Grande do Norte. Diga quanto é a empreitada. Nós lhe damos a metade agora e a outra metade quando o serviço tiver sido feito”.

         - Vi bem quando Massilon ficou pensando, pensando, depois disse: “Mil contos de réis. Nem um cruzado a menos”. O outro homem, que não havia falado ainda, bateu o martelo: “Está firmado! Pega os quinhentos. Mas nós queremos para já, o trabalho, e que ninguém fique sabendo que nós estivemos aqui!”

         - Tinha um claro pouco, mas tinha da lua, aí Massilon conferiu o dinheiro. Apertaram as mãos uns dos outros. Voltaram. Foi quando ouvi bem Massilon dizer: “Quinta-feira da próxima semana estarei lá com os meus cabras!”

         Os homens entreolharam-se. Uns com medo, outros desconfiados de que Vento Solto estivesse mentindo. Logo iria pedir alguma recompensa pela informação. Hoje é segunda-feira... Daqui a três dias... Pensou lá com os seus botões Lucas Pinto, irmão do Coronel que parecia estar ameaçado de morte.

         O impacto foi grande. Ninguém quis mais saber sobre o ladrão do bode Merlim, nem onde morava, nem nada. O assunto agora, da maior importância, era o caso contado pelo forasteiro.

         O delegado, assumindo um ar de superior, na qualidade de comandante das forças policiais do lugar, perguntou com redobrada voz de histrião:

         - Sujeito alagoano que habitava a Paraíba, diga-nos: como poderemos acreditar no que estás a revelar?

         Guerra, Danta e Wilson encontravam-se bem perto do homem, podiam sentir a fedentina que saia de sua roupa que pedia uma limpeza urgente, mistura de poeira, suor e do emporcalhado andarilho que, seguramente, há muitos dias não sabia o que era um banho. Por isso os meninos não perderam nenhum pormenor. Até riram por terem conseguido lugar privilegiado para assistirem todo aquele drama de conotações chocarreiras apresentado por alguém que ninguém nunca vira na vida.

         - Os senhores me coloquem em algum recanto, bem vigiado. Se acontecer os senhores me libertem para eu seguir meu caminho, Não acontecendo podem fazer comigo o que quiserem.

         Lucas Pinto, o prefeito. Andou de um lado para o outro. Mão na cintura, outra levava à boca tamborilando com um dedo. Pensava. De repente, voltando-se para o delegado, ordenou:

         - Leve este homem para o Apanha Peixe, no meu terreno. Que dois soldados fiquem com ele por lá o vigiando de dia e de noite. Vou passar um telegrama para o presidente da Província. Chico Pinto está para Caraúbas, foi resolver assuntos de interesse particular, volta somente depois de amanhã.

         Padre Benedito perguntou, como que já aconselhando:

         - Não seria viável mandar um mensageiro ao Coronel Chico Pinto para que se resguarde, ficando por lá alguns dias, enquanto se resolve a situação?

         O prefeito balançando o dedo indicador concordou:
        
          - Isso, isso, isso. Vou mandar Manoel Cosme. Mas duvido que ele aceite se esconder. Não custa tentar, fazer o que estiver ao nosso alcance.

         Logo a reunião foi desfeita. As ordens seriam cumpridas. As pessoas voltaram a comentar a possível vinda de um bando de marginais para matar o Coronel Chico Pinto. A mulher do Coronel ficou aflita, bem como toda a sua família.

         Manoel Dantas deu as doze badaladas do meio dia. Os ciganos, ouvindo aquela narração enfadonha, mas ameaçadora do ex-integrante do bando de Massilon, resolveram desarmar as tendas e, amanhã bem cedo, partiriam.

         Guerra e Danta ainda aproveitaram para um rápido mergulho na lagoa. Wilson não se interessou, foi para casa, ansioso para contar tudo ao seu pai. Mas os dois amigos que tomavam um delicioso banho nas águas calmas da dadivosa lagoa conversavam:

         - E o nome de quem roubou o bode?

         Disse Guerra. Danta avaliou:

         - Talvez o delegado recomece a investigação depois de quinta-feira.

         Guerra afundou na água, voltou à tona e ponderou:

         - O nome do matador de Merlim o delegado sabe. Mas como é pessoa que está por aqui, não é daqui, não sabe onde ele mora.

         Danta observou:

         - Coitado do Merlim, nunca ninguém vai saber quem o carregou e se ainda vive, se realmente o mataram e o comeram... Ainda mais agora com essa história de Massilon.

         Os meninos davam pernadas na água. Do outro lado da cerca, que separava o poço das Matutas - lugar reservado para as lavadeiras de roupa, mulheres protegidas com enormes chapéus de palha retiravam a sujidade das vestimentas dos habitantes de Verdejante. Batiam nos panos ensaboados com um cacete, deixando a barrela escorrer para dentro da lagoa. Algumas lavadeiras se encontravam ali, trabalhando duro, colocando trouxas de roupa para quarar. As mais experientes fumavam cachimbo, outras ainda cantarolavam. Lugar predileto para boatos, mexericos e falar da vida alheia.

         Danta e Guerra finalmente saíram, batiam nos ouvidos como para retirar a água por ventura foi deslocada para dentro dos mesmos e, subindo as barreiras, rumo as suas casas, ainda remoíam o assombroso caso do bando que viria quinta-feira para dar cabo do Coronel Chico Pinto.

         Dizia o menino Danta;

         - Melhor o Coronel se esconder.

         - Também acho.

         Respondia Guerra e em seguida inquiriu o amigo:

         - Será que aquele homem misterioso disse a verdade?

         Danta apenas falou:

         - Sei lá. O prefeito mandou que ficassem dois soldados com ele todo o tempo.

         E assim seguiam, subindo sempre. Passam pela residência do marceneiro Janoca Pade, Francisca, sua filha, sentada na janela, brincava com uma boneca de pano. Avistou os meninos desceu da janela, entrou em casa.

         Danta comentou:

         - Você viu? Francisca de Janoca parece que estava com medo de nós...
        
         Não sabe ele que, anos mais tarde, aquela garota viria a ser sua esposa, mãe de uma prole de muitos filhos.


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RESUMO: Que confusão! Nome do sujeito que roubou o bode Merlim; aonde foi morar tal sujeito; chegada de Vento Solto; segredo revelado, ou seja, péssima notícia para os Vedejantenses, pois poderá haver uam invasão dos cangaceiros à cidade. E não é que a cigana tinha razão? Padre Benedito tem que se benzer três vezes seguidas durante um dia inteiro. Um dia de expectativa, ou dois dias calculando as probabilidades? Ninguém sabe o que acontecerá de hoje para amanhã naquela pequena e pacata cidade. O conveniente é aguardar os próximos capítulos.

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