domingo, 3 de julho de 2011

Romance de Domingo

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra



Capítulo VIII

            Domingo!
            O sino convida a todos os paroquianos para a missa das 08h00. São três chamadas com intervalos de meia em meia hora. A comunidade fica toda ouriçada, o dia de descanso, próprio para rezar, visitar amigos e conversas jogadas fora.
            Vestem-se, os verdejantenses, suas melhores roupas; calçam os melhores calçados. Alguns homens possuem um chapéu para a diária, outro para acontecimentos importantes e, especialmente, para a missa de domingo. As mulheres trazem o catecismo, o terço e a mantilha; outras conduzem um colorido leque para se abanarem. E as crianças também vão à missa, acompanhando os pais, com a roupinha de brim, ou aquela guardada com destaque: "roupa de marinheiro", o sonho de toda criança é um dia vestir uma roupa de marinheiro.
            Os fiéis, cristãos, devotos de Nossa Senhora da Conceição e são João Batista não perdem uma celebração aos domingo. Cada um leva o seu dízimo, espontâneo e sem se estipular quantia nenhuma. Até dos sítios mais próximos vêm os beatos e as beatas, dispostos a se confessarem e receberem o perdão de Deus. Pois já na igreja se encontravam Boboso, da Ponta; Tatão e Antonio Flor, de Melancias; Seutônio Barbosa, de Água Fria; Zé Bruaca, da Soledade. Todos acompanhados de esposas e filhos. Vinham em carroças ou a cavalo.
            A igreja já repleta de fieis. Quase não cabia mais ninguém, quando padre Benedito Basílio Alves penetrou na Sacristia, aprontar-se com os paramentos para a celebração da missa. Naquele templo religioso, havia cadeiras cativas com assentos removíveis e, em baixo, um aparato de tábua forrado com almofada que servia para se ajoelhar sobre o mesmo. Somente as pessoas mais destacadas da cidade tinham esse privilégio: o Coronel Chico Pinto; o empresário João de Brito; o fazendeiro Chico Canuto e um ou outro que se dispusessem a pagar pelo luxo. Os demais fieis que se virasse para se ajoelharem em tábua limpa e dura, assim pagariam os pecados mais rapidamente.
            Ouviu-se o som mavioso do Órgão, tocado por Mundinha Dantas. Um coro de moças que se abanavam constantemente entoava músicas sacras em latim. As pessoas aprendiam, de tanto ouvirem aquelas músicas, e também entoavam o intróito.
            Entraram um garoto, acólito, vestido batina vermelha e branca, coroinha que ajudava ao celebrante na hora da consagração e noutros instantes da liturgia; depois o Vigário e, atrás deste, Manoel Dantas, invariavelmente mastigando as gengivas há muito recolhidas às suas insignificâncias.
            Depois dos atos iniciais, o celebrante subiu no púlpito para a homilia. Não usou o evangelho daquele domingo para falar aos às suas ovelhas, mas um assunto que estava na boca do povo de Verdejante: os ciganos adivinhos e ciganas cartomantes.
            - Estimados paroquianos.
            Era sempre com essa saudação que começava seus célebres sermões. Não era nenhum Padre Antonio Vieira, mas sua fama corria mundo pela oratória sacra. Do alto daquele palco tradicional nas igrejas, costumava derrubar arrogantes poderosos; demolia ---fetiches, preconceitos e combatia os incautos.
            Começou a oratória, em nome de Deus:
            - Meus queridos amigos, amados em nome de Deus - aquele que tudo pode! - convoco-os, para, neste instante, ouvirem o que este Vigário, que mesmo tendo vindo de tão longe, das terras do sul, considera-se um verdejantense da gema!
            Os mais espertos, apuraram o ouvido, tentaram chegar mais para perto para ouvir o Padre, enquanto as beatas mais famosas do lugar se ajeitavam em seus assentos, juntas, entreolhando-se, como que já estivessem esperando o assunto a ser tratado pelo Cura, naquela ocasião, tão melindroso para ele e para a igreja.
            - Sabemos todos, há um punhado de ciganos arranchados em nossa cidade. Mais precisamente no terreno de Júlio Marinho, ali próximo à Cruz das Almas.
            Uma das beatas, Tilde que se encontrava exatamente entre as outras duas, Cotó e Adofina, cochicham com as colegas:
            - Bem que suspeitei que ele viesse defender a ciganada...
            Continuou o Padre, retirando um lenço do bolso da batina e enxugando o rosto:
            - A curiosidade é própria do ser humano, assim como a vontade de viajar e conhecer outras terras, outros povos. E, também, assim como qualquer homem, pois sou um deles, tive a ousadia de adentrar a tenda da Cigana que lê mãos e desvenda os mistérios com as cartas de um baralho.
            Um silêncio sepulcral pairava no ar. O adro da igreja, completamente repleto de fieis, era tão sem perturbação, que dava para ouvir a batida de corações mais ansioso, empenhados em saber o que tinha para dizer Padre Benedito Basílio Alves sobre cartomantes e ciganas.
            - Por Deus, eu vos digo: a mulher não disse nada sobre minha vida que não fosse verdade e o que eu não soubesse.
            Um gaiato, que se encontrava de pé, perto da porta principal, pilheriou:
-         Será que ela revelou o nome da dita cuja?
            Os presentes, como uma mola movendo-se automaticamente, volveram a cabeça, cada um, em direção ao homem que, cabelos desalinhados, mãos nos bolsos, roupa amarrotada, ficou encarando a todos com olhos de peixe morto. Somente Padre Benedito Basílio Alves riu, um riso irônico e fez a seguinte observação:
-         É o Lino de Maria Dasgraças... Um páx-vóbis...
            Houve espécie de zum zum zum em todo o ambiente sagrado, cada um dizendo alguma coisa, parecia os inaudíveis palradores da babel.
            Retoma o fio da meada o pregador:
            - Mas na cabeça de algumas figuras impolutas de nossa cidade, algo de muito grave aconteceu no mundo: Padre Benedito virou a cabeça, ficou louco e sai por aí entrando em ambientes proibidos, conversa com mulheres de vida fácil e está construindo um alambique para fabricar cachaça.
            Adofina, uma das mais duras acusadora das atitudes do Padre, levantou o braço, depois ficou de pé, requereu uma fala para defender as companheiras e aqueles que comungassem com o que teorizavam.
-         Pois pode falar, senhora Adofina.
           Disse o Vigário, cruzando os braços e esperando o que a mais assídua católica verdejante tinha a relatar.
            - Bom, vamos fazer de conta que o senhor fala a verdade, que nada demais fez romper os vossos votos para com a Igreja, mas não há uma testemunha para aprovar as palavras que o senhor está soltando no ar...    
            - Dona Adofina, tenha a sua alma para Deus! Como é possível alguém naquela tenda que só é permitido entrar uma pessoa de cada vez? E vos reclamo em proferir, diante de todos aqui, salientar o porquê da suspeita sobre a minha palavra?
            - Só retiro a suspeição, aliás, nós só retiramos a suspeição se o senhor mostrar uma testemunha. Do contrário, nada feito.
            Tudo indicava tratar-se de uma posição arquitetada, bem planejada, com a orientação de gente entendida no assunto, uma vez que colocavam, com essa situação, o padre na defensiva, quase certas que não teria como provar por testemunhas o que aconteceu entre cigana e ele, o acusado.
            Padre Benedito passou novamente o lenço pela testa molhada de suor. Passou os dedos pela basta cabeleira, pensou e argumentou:
            - Prezados paroquianos, fica a minha palavra contra a de dona Adofina. O julgamento está dentro da consciência de cada um de vocês. Não tenho nenhuma testemunha, exceto a própria cigana que, naturalmente, não pode funcionar como testemunhas nesse caso.
            Ouviu-se um grito de menino:
            - EU!
            Saindo de dentro de alguns homens que se encontravam no lado esquerdo do púlpito, Guerra vinha sereno, desconfiado e temeroso de que o seu padrinho o repreendesse e, certamente, isso aconteceria, mas resoluto tinha que se apresentar e testemunhar em favor do seu amigo e protetor.
-         Eu o quê, Guerra?
             Perguntou-lhe padre Benedito Basílio Alves, intrigado com aquela repentina aparição.
            Carrinho, pai de Guerra, apressou o passo, igualmente vindo do meio dos presentes naquele lado esquerdo da igreja, chegando perto do filho:
            - Que vai fazer desta vez, menino! Já não bastam suas diabruras pelas ruas? Agora vem interromper a fala do padre, gritando e chamando a atenção de todos?
           O pregador, do alto de sua importância, também gritou, parecia irritado:
           - Deixa o garoto! Meu afilhado tem algo a dizer! Vem, fica aí diante de todos e desembucha o que tem para nos dizer?
            Guerra, mais aliviado, lançou um olhar de desdém para a s três mulheres que denegriam a imagem do seu padrinho e em seguida ficou assim como se não estivesse enxergando ninguém, sua vista contemplava o vazio. Para ele naquele momento não havia uma só pessoa na igreja, só ele, falando para o mundo inteiro:
             - Eu! Eu sou testemunha do padre Benedito! Desta vez, suas três idiotas, caíram do cavalo, porque eu estava debaixo da mesa onde a cigana bota as cartas e lê a mão. Bem no momento que o meu padrinho entrou, eu fiquei encolhido, sem respirar e ouvi tudo.
             O templo, a morada de Deus quase veio abaixo.
            - Oh!
            Todos num mesmo tom de admiração e curiosidade pronunciaram “oh!” tão alto que se deve ter despertado os habitantes do outro lado da lagoa. Tilde, Cotó e Adofina apenas arregalavam os olhos desbotados pelo tempo e pela mania de olharem com sentimento de culpa para qualquer coisa ou pessoa. Nem a igreja, que frequentavam mais de duas vezes todos os dias para rezarem, podia-lhes devolver um pouquinho de brilho sequer naquelas vistas turvas e decepcionantes.
            O padre também estava pasmo:
           
-         Guerra! Por favor, explique-se!

            - Entrei na tenda sem ser notado. Nem sabia que o senhor estava por lá. Danta e Wilson sabem como tudo aconteceu. Ouvi tudo. Não perdi uma só palavra daquela cigana bonita. Depois saí, já com minhas pernas dormentes de passar mais uma hora naquela posição de escondido, e ninguém me viu saindo.

            Carrinho quis rir com a narração do filho, conteve-se e fez menção de agarrar a orelha do Guerra, foi contido por uma mão branca, mas forte, era Adrião Bezerra, com seu chapéu de massa na outra mão que também segurava sua inseparável bengala.

           - Desta vez o meu neto praticou uma boa ação! Deixem-no. Prossiga filho, se ainda tiveres algo a acrescentar.

Guerra ainda assegurou, com convicção:

            - A cigana disse que meu padrinho é um homem bom e um líder espiritual, e que sua missão é fazer o bem. Só isso.

            O burburinho formado, padre Benedito Basílio Alves pediu silêncio e que todos voltassem para os seus lugares.

             - Eu não tenho mais nada a dizer. Apenas que os nossos atos são caracterizados por nosso caráter. A maldade, às vezes, está no juízo que os outros fazem de nós. A maldade está muitas vezes no próprio coração de quem emite sua opinião. O meu afilhado não praticou um ato nobre, mas foi prudente em revelar-nos a sua ação de penetrar num recinto suspeitoso para alguns, mas que é igual a qualquer outro. Há muitos lugares que, pensamos ser puros, mas que desonram mais do que a tenda da cartomante. Obrigado.

            - Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Todos responderam:

- Amém.

           Os fieis ficaram pensativos. As três mulheres passaram a ser alvo de fofocas por parte da população. Enganaram-se na avaliação que fizeram, tinham que pedir desculpas ao Vigário e perdão a Deus pelos pensamentos pecaminosos. Enquanto isso, na Sacristia, Manoel Dantas estava possesso com Adofina que levantara suspeita do santo padre na frente de toda Verdejante:

-         Esta não pode ter perdão! Deus vai castigá-la, ora se não vai!
                                                                                                                                    
           Rodopiavam as chaves com tanta força que de longe se ouvia o seu barulho característico. Os mais ativos adivinhavam com facilidade aonde encontrar o honesto Sacristão. O padre já havia consagrado à hóstia; os fieis que se confessaram. Chega a hora final do ato mais solene do catolicismo:

-         Que Deus os acompanhe.

           Estas foram as derradeiras palavras do celebrante, as pessoas foram saindo, devagar e sempre e cochichando entre elas sobre o ocorrido. Que missa esquisita, pensavam alguns...


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RESUMO: O que será que vai acontecer no próximo capítulo? Apareceu o criminoso que fez desaparecer o bode Merlim? Ou mais  algum acontecimento inesperado para manter Verdejante bem cheia de novidades? Só aguardando os próximos capítulos que prometem...


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 * William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos da obra de seu pai, Walter de Brito Guerra.

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