domingo, 29 de maio de 2011

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra - Romance

Por William Guerra*


Capítulo III

         Guerra e seu amigo Danta encontravam-se sobre os fortes galhos do pé de cajarana no quintal de casa. Vasto quintal, bem limpinho, varrido com vassoura de piaçaba. Toda manhã, antes que o galo cante, já lá está Socorro, arrumadeira que vem diariamente acudir dona Nhá nos afazeres, cantarolando e asseando toda a casa, começando pelo quintal. Ali há canteiro de hortaliças: coentro, pimentão, pimenta-do-reino e tomate; mais adiante pés de mamão, de pinha e goiaba e, bem no centro do terreno o pé de cajarana.
         Mais no final o chiqueiro das galinhas. Vizinho à cozinha, um alpendre onde estão instalados o moinho e o pilão. Uma decrépita mesa apinhada de bugigangas e o antigo guarda-comida onde repousam algumas vasilhas quase que nunca usadas. Na janela que abre para o quintal, instaladas panelas de barro e o utilíssimo caco de torrar café. Ainda, dispostos em poial de pedra, potes com água. Logo derreados ao chão, com todos os seus apetrechos, cangalha e ancoretas.
         Os amigos conversavam sobre o acontecido. Guerra comentava que seu pai o havia repreendido, e só não lhe dera uma sova graças ao seu avô, Adrião Bezerra. Danta também falou que levou ralhada de sua mãe, advertindo-o que não procurasse briga com outros meninos, pois, se chegasse notícia de que apanhara na rua, apanharia em casa também. Guerra, por seu lado, estava chateado porque seu pai prometera que, ano vindouro, ele voltaria a estudar. Tinha que seguir o caminho de João, seu irmão que retornará no final deste, formado em professor, orgulho da família.
         - Não quero estudar não! Esse negócio de estudar é para maricas!Eu não ando perfumado, nem limpo, e não sou bem-procedido. Meu negócio é a mata, as baixas, a lagoa, o rio cheio d’agua... A serra, passarinhar, correr livre. A escola prende muito a gente, toma muito o nosso tempo.
         Danta escutava tudo silenciosamente em sinal de acordo com tudo o que Guerra dizia. Nos seus planos havia a grande vontade de substituir seu genitor na Sacristia. Manoel Dantas herdara do pai essa atividade e, passaria, com certeza, para o filho. Aliás, era o sonho de Danta: ajudar o padre na missa celebrada em latim; carregar o breviário; aparar a hóstia com a patena; arrumar à cômoda; acender as velas, apagá-las; fechar e abrir a igreja e, o máximo: tocar no sino, bater sinal, chamar para os atos religiosos, a hora da Ave-Maria... E quando houver as Missões? Balançar a matraca nas madrugas frias; percorrer as ruas cantando hinos de louvor atrás dos missionários.
         - Isso também não me serve. Serve para quem quer ser padre. Eu não.
         - É, mas você dorme na Casa Paroquial. Padre Benedito é seu padrinho e vive lhe adulando...
         - É diferente. Lá em casa eu tenho medo de dormir, porque de madrugada aparece alma penada. Na Casa Paroquial não tem alma penada.
         Os dois conversavam despreocupados. Danta brincava com as folhas compostas de muitos folíolos e com suas flores bem pequeninas, assim feitas panículas cujo cacho tem ramos maiores na base e vão diminuindo até o topo. Guerra remexia o seu cofre feito de tábua. Lá escondia seu embornal, a baladeira, bolinhas de gude, um pião e uma latinha de manteiga com algumas moedas que seu padrinho lhe dava. Remexia, retirava todos os trecos, tornava a pôr tudo lá dentro, assoprava, limpava. No inverno, para não molhar seus pertences, cobria a caixa com pedaço de lona.
         Permaneceram assim, por mais algum tempo, conversa vai, conversa vem, subir mais um galho, tornar a descer, pegar as folhas, equilíbrio, destreza, acostumados ali em cima, o mundo não tinha nenhuma importância para eles.
         Foi quando o Wilson, um dos garotos mais chegado aos dois, apareceu no quintal, sob a antiga árvore e gritou:
         - Guerra! Danta! Sabem da novidade?!
          Os dois amigos olharam para baixo e disseram ao mesmo tempo:
         - Não! Qual?!
         Wilson, ágil, subiu um pouco e, mais próximo dos dois, informou:
         - Chegou um circo!
         Os três entreolharam-se. Riram. Era mais uma diversão. Palhaço pernas-de-pau. Espetáculo. Uma novidade que iria contagiar toda a comunidade.
         - Aonde foram armar o circo?
         Perguntou Danta.
         - Na Rua de Maria Beltrão.
         Guerra completou:
         - Bem pertinho daqui.
         Desceram da árvore, foram se instalar debaixo do alpendre. Danta e Guerra sentaram sobre o pilão que estava deitado, enquanto Wilson pegou um toco que servia, também de assento, e ficou acocorado sobre o mesmo.
         Socorro já passava o café, o cheiro invadia o ar. Tapiocas sobre uma urupema na mesa da cozinha. Daqui a pouco serviria o café.
         Guerra ainda reperguntou:
         - Tão cedo, você já viu o circo?
         - Já. Trouxeram em carros de boi. Dizem que outros vêm por aí, trazendo mais coisas do circo. Até o Ford 29 de Joaquim Relaxado foi para trazer as mulheres e as crianças.
         Danta, ficando de pé, mãos nos bolsos do calção, também indagou:
         - Será que tem luz para alumiar de noite?
         - Ouvi os homens dizendo que trouxeram motor e óleo. Iluminação própria.
         Danta esfregou as mãos uma na outra.
         - Vai ser demais!
         Wilson e Danta palestravam animadamente sobre a novidade. Dançarinas. Trapezistas. Mágicos.
         - Eu vi uns bichos: um macaco, uma arara e um bode. Cachorros existem seis.
         - Os mastros são bem altos?
         - Vixe! Uns dez metros!
         - É coberto?
         - Falaram que sim.
         E assim seguia o papo entre os dois. Perceberam que Guerra estava triste, calado. Olhar vazio. Alguma coisa o estava incomodando. Que seria? Ambos os garotos dirigiram perguntas ao Guerra:
         - Que foi? Não gostou da notícia?
         Guerra não respondeu. Absorto, continuava olhando para nada, era como se estivesse com o pensamento longe. Que estaria se passando pela cabeça do amigo? Pensou Danta que o conhecia melhor do que todos.
         - Fala Guerra! O que foi que houve?
         O filho do tesoureiro da prefeitura, até que enfim resolveu desabafar:
         - Nada não. Ontem aconteceu o que aconteceu. Vocês sabem. Perdemos o ninho de rolinha. Feri a cabeça do cabelo de burro quando foge. Meu pai queria me bater. Minha mãe brigou comigo. As pessoas olham para mim assim com olhar meio atravessado. Sei lá se o Pedrão não vai querer se vingar?
         - E daí?
         Perguntou Danta.
         - Não vou ao circo. Resolvi. Pronto.
         Wilson e Danta se olharam mutuamente. Balançaram a cabeça negativamente. Tinham que animar o amigo. O circo sem o Guerra não tinha graça. Ele sabia até fazer que nem os circenses... Saltar. Pulo mortal. Ficar pendurado no trapézio. Imitar o palhaço. Sem o Guerra o Circo não será animado, pelo menos para Danta.
         Há pouco tempo começaram aparecer circos na cidade. Antes vinham as companhias de teatro. Eram artistas que apresentavam peças dramáticas. Só. Ou, por outra, humor e diversão. A novidade do circo data, em Verdejante, dos anos 30 para cá. O circo é algo mágico que nos faz viajar na alegria dos palhaços, nas manobras arriscadas dos malabares com suas acrobacias. Todo Circo é mágico e nos encanta por suas cores. Esse anfiteatro pode ter surgido na China há quase cinco mil anos e já existiam contorcionistas, equilibristas e acrobatas. Contam que os guerreiros chineses usavam da técnica da acrobacia como forma de treinamento. Em Roma, por volta de 70 anos antes de Cristo, dizem ter surgido o Circo Máximo tragicamente destruído num incêndio. No mesmo local construíram o Coliseu.
         No nosso país o circo chegou por volta do século XIX. E por aqui, cidade de Verdejante, tem menos de dez anos que aparecem. Uma temporada de um Circo numa cidade tem que ser bastante durável, uma vez que a dificuldade de locomoção de um centro para outro é precária. O transporte é feito em carroças, carros de boi e em lombo de animal. Recentemente é que se usam caminhões no seu traslado.
         Uma novidade que se espalha por toda a cidade, até pela zona rural. Todos querem saber as atrações, as dançarinas, se são bonitas, que interessam aos rapazes que ficam flertando, ou se há mais de um palhaço, preferência dos mais idosos ou homens casados e, especialmente interessa às crianças. Quais atrações em segredo como a mulher barbada; o bode falante; cachorros amestrados e até leões. Tudo isso gera assunto no meio do povo. A notícia de uma novidade, como a chegada do circo em Verdejante, corre para toda parte assim como o correr do fogo em mato seco.
         Guerra, meio desinteressado, queria saber o nome do circo.  
         - Circo Maior de Todos.
         - Que coisa! Vai vê é bem pequeno.
         - Não. Disseram que é muito grande!
         Enquanto Guerra ia, aos poucos, se animando, chega Carrinho, seu pai. Vem enxugando o rosto com uma toalha feita de saco e um aplique de franjas pela borda. Pergunta se Guerra escovou os dentes e volta a assegurar:
         - Próximo ano volta a estudar com Joaninha de Benvinda. Está me escutando, Guerra?
         O menino balançava a cabeça.
         - Agora vai tomar café com tapioca. Leva os amigos também.
         Dali a dois dias se daria a estréia do circo. Primeira noitada. E durante esses três dias Guerra e Danta não foram passarinha. Quase não iam à lagoa. Queriam ficar perto da armação daquele enorme círculo feito de paus e corda; arame e ferro; tábua e corrediça.
         No centro o picadeiro. E os mastros com o trapézio pendurado. O palco havia sido erguido e cortinas o encobriam de onde sairiam atrações repletas de mistério. Em volta do picadeiro cadeiras e camarotes para as autoridades. E mais para trás o poleiro.
         Amanheceu o domingo que se daria a estréia do espetáculo. Pela manhã um palhaço com perna de pau e carregando um grande funil saiu pelas ruas arenosas, anunciava as atrações. A meninada o acompanhava gritando e respondendo aos reclamos do palhaço Pimentinha. Este também gritava com a boca no funil:
         - Hoje tem espetáculo?
         - Tem sim senhor.
         - Às oito horas da noite?
         - É sim senhor.
         - E arrocha negrada!
         - Ôoooooooo!
         - O palhaço morreu!
         - O couro é meu!
         Em cada esquina a caravana parava enquanto Pimentinha dizia o que seria exibido logo mais à noite:
         - Baianas com perna de fora, cantando e dançando fazendo os marmanjos babar. Trapezistas, malabaristas, mágicos e a grande atração: o bode que adivinha. Ele descobre para os maridos as esposas que passam chifre. É impressionante. Vamos lá, assistir ao bode que adivinha. A entrada custa um tostão o adulto e criança só pagam a metade.
         Depois continuavam pelas ruas a gritaria e os anúncios do palhaço:
         - Hoje tem Pimentinha?
         - Tem sim senhor.
         - Hoje tem Lasquinha?
         - Tem sim senhor.
         Lasquinha era outro palhaço. Assim seriam dois palhaços a se apresentarem.
         - E arrocha negrada!
         - Ôoooooooo!
         - O palhaço morreu!
         - O couro é meu!
         - E o palhaço o que é?
         - Ladrão de mulher!
         - W arrocha negrada!
         - Ôoooooooooooooo!
         O povo saía às calçadas, janelas e acenavam para o perna-de-pau, riam, aplaudiam, e diziam bem alto, esta frase, para todo mundo ouvir: -Hoje não perco a estréia do circo nem por cem e mais uma cocada!
         Ao voltarem para o circo, as crianças que acompanharam Pimentinha na algazarra pelas ruas ganharam um sinal no braço, teriam entrada grátis.
______________________________________________________

RESUMO:
domingo o desfecho da temporada do circo Maior de Todos em Verdejante. 61 dias de sucesso, mas, na última noite, um episódio abate os componentes do circo. Tristeza. Choro e uma partida melancólica. A vida continua e vêm, em seguida, parace coisa combinada, os ciganos da etnia Caló. Não deixem de ler o Capítulo TV.

______________________________________________________

* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos da obra de seu pai, Walter de Brito Guerra.


Nenhum comentário:

Postar um comentário