domingo, 22 de maio de 2011

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra - Romance

Capítulo II

          
   Na rua de trás. Como informara Danta, ficava a residência do menino Pedrão. Seu pai tinha uma pequena mercearia na sala da parte da frente da casa. Vendia rapadura, farinha, fumo de corda, pavio, lamparina, querosene, açúcar, café em grão, bolacha fogosa, tamanco, liga de baladeira, e mais algumas quinquilharias trazidas pelos mascates que por Verdejante passavam.
              A venda ou bodega do pai do Pedrão, estava sendo bastante freqüentada pela freguesia, é que chegara de Caruaru a mais recente novidade para a cozinha. As donas de casa até exigiam que os maridos comprassem a coqueluche do momento: a grelha! Chega de assar carne em riba da brasa! Exclamavam as comadres. Mas, mesmo assim, poucas podiam ter aquele utensílio, pois ainda custava caro: $ 20 réis cada grelha. Todas do mesmo formato e tamanho, feitas de ferro fundido, com cabo também de ferro. O inconveniente era quando esquentava, fazia-se necessário um pano bem grosso para manejá-la. Mas que era um alívio não ter que retirar a cinza que pregava na carne assada, isso era. Por isso todos queriam uma grelha. Não tardou e Mansidão, o ferreiro do lugar, estudando o objeto, fabricou debaixo da sua latada uma grelha com arame do mais fornido. Deu certo. Ganhou bastante, pois o seu invento fazia o mesmo efeito e custava a metade da importada de Caruaru.
              Já por volta das duas da tarde, os meninos bateram à porta de duas bandas da casa de Pedrão.
              - Seu Pedro?
              Pedro, o nome do pai de Pedrão. O bodegueiro, que se encontrava numa soneca amena, espichado numa rede de lona listrada, ouviu a voz bem longe, respondeu sonolento:
              - Quem é?
              - Pedrão tá aí?
              Sem abrir os olhos, a dita cuja armada na mesma sala da frente, onde se prestava para amontoar as coisas que vendia, seu Pedro respondeu:
              - Tá não...
              Danta e Guerra saíram à procura de Pedrão lá embaixo, onde havia um terreno baldio; local de peladas com bola de meia, ou com bexiga de boi. Pegava-se, na matança, a bexiga, lavava-se e, depois, enchia de ar, soprando no orifício numa das pontas. Não ficava bem no formato de uma bola de couro, mas servia para ser chutada a gol.
              Guerra resmungava porque tinha de andar, rua acima, rua abaixo, para encontrar o tal de Pedrão cabelo da cor de burro quando foge.
              - Ora, mas quem já viu uma cor dessas, Danta? Isso lá é cor de cabelo, homem!
              E o amigo quase a correr, atrás de Guerra, ainda suplicando:
              - Guerra, deixa isso para lá. Pode ter sido uma ventania que carregou o ninho para longe! Ou até mesmo outra pessoa que desfez o recanto da rolinhazinha... Vamos voltar?
              - Só descanso quando o Pedrão me disser que não foi ele o desgraçado que roubou o nosso ninho!
              Danta juntava as duas mãos, olhava para um céu azul, sem nenhuma nuvem, exclamava só no pensamento: que vai ser de mim, meu bom Jesus!
              Era um menino criado quase que na rua, pouco chegava a casa, somente para se alimentar e dormir, invariavelmente. O mesmo acontecia com Guerra. Este, menos ainda ia a sua residêncicia. Sempre dormia na casa paroquial, do seu padrinho: Padre Benedito Basílio Alves. Danta, apesar de acompanhar o amigo em todas as escaramuças, era um garoto medroso, não brigava, puxava a briga e corria. Guerra que agüentava o tranco. Mas dessa vez pressentia que a coisa iria ser bem diferente.
              Chegaram onde Guerra queria chegar: no cisqueiro da Legião. Ou seja, vizinho ao prédio da Legião Brasileira de Assistência, entidade que cuidava de atender às necessidades dos mais pobres. Ali se distribuía leite, roupa vinda do estrangeiro, remédios e outras doações enviadas pelo governo federal, além de promover cursos de culinária, bordado e costura. Ao lado daquele órgão respeitado, havia uma ciscalhada onde a gurizada se reunia para bater a sua pelada. Muitas vezes saía um guri com um golpe no pé, causado por algum pedaço de vidro jogado por lá. Na época do inverno, quando se andava descalço por aquela sujidade, pegava-se frieira na certa.
              Lá estava Pedrão. Magro, o mais alto da turma. Com uma bexiga de boi debaixo do braço, contava os jogadores de uma barra e de outra. Ele, por ser o dono da bexiga, era quem apontava os do seu lado e os adversários.
              - Então é aquele o cabelo da cor de burro fugido?
              Falou em tom de indagação dirigindo-se a Danta.
              - Da cor de burro quando foge!
              Exclamou o amigo inseparável, mas bem baixinho, sussurrando mesmo.
              - Tanto faz: quando foge ou fugido. É o mesmo que o sujo falar do mal lavado.
              Chegaram próximo ao grupo de peraltas.
              Danta saiu de fininho... Foi-se para uma esquina, olhando de longe o acontecimento. Todos os presentes voltaram à vista para o recém-chegado.
              Pedro, adiantando-se, bradou:
              - Dá o fora, você não joga. Não é dessa rua!
              Guerra, dando um passo atrás, respondeu:
              - E quem foi que lhe disse que eu quero jogar com esta bexiga de boi? Lá na nossa rua nós temos bola de couro.
              Mentiu. Queria sentir a reação do insolente.
              - Então, o que vem fazer aqui?
              - Falar com você, seu cabelo da cor de burro fujão!
              A turba caiu na gargalhada. Foi água na fervura. Pedrão deixou a bexiga cair, voou em cima de Guerra. Este, de um salto, escapou das garras do atacante, pegou um porrete que fazia às vezes de trave naquele campinho, e, levantando o braço, perguntou:
              - Foi você quem roubou o meu ninho de rolinha, escondido lá na Baixa da Tamarineira?
              Pedrão, que não levava desaforo para casa, respondeu:
              - Foi! E daí?   
              Guerra, possesso, não quis mais saber de conversa, desceu o braço com o porrete no cocuruto de Pedrão. O sangue espirrou longe, o menino caiu ciscando na areia quente.  
               Circunstantes que perambulavam por ali pegaram o agredido, levaram-no à farmácia de seu Tônio para os devidos curativos. O antigo farmacêutico, colocando os surrados óculos na ponta do nariz, limpou o sangue misturado com areia, falou:
              - Pega dez pontos. Não é profundo, mas provocou um golpe no couro cabeludo bastante grande.
              O ajuntamento de meninos e gente de toda espécie foi imediato. Os boatos. O disse me disse. Cada um procurava vender seu peixe. Uns davam razão ao Pedrão, enquanto outros apoiavam a ação do Guerra. Nisso, chegou apressado, seu Pedro, o pai do ferido que ainda se encontrava, fazendo uma cara de dor, recebendo os últimos pontos.
              - Que aconteceu menino?!
              Pedrão, olhando de baixo para cima, respondeu:
              - Um brancoso meio avermelhado: um tal Guerra levado da breca me acertou com um cacete.
              - E cadê ele!?
              - Quem, Guerra?
              - Não, a arma do crime, o cacete?
              - Ora pai. Para quê?
              - Levar ao Delegado. Dá parte. Onde já se viu, quase lhe mata com uma bordoada!
              Foi quando apareceu um moreninho, cabelo enrolado no casco, trazendo o instrumento ou “corpo de delito”: era um pedaço de pau de quase um metro, aroeira pura, com cinco centímetros de diâmetro.
              - Taqui, ó!
              Exclamou o pirralho, entregando-o ao pai de Pedrão.
              Este, pegando aquela biriba, passando a mão para sentir a textura do dito cujo, avaliando o seu poder de destruição, alarmou apontando para o farmacêutico que dera o último nó na linha que costurara o talho na cabeça do menino.
              - Veja seu Tônio! Que absurdo! O meliante queria mesmo matar meu filho! Pegue no pau, vê se estou mentindo?
              O dono da Farmácia, untando o curativo pronto com água oxigenada, limpando as impurezas, depois de ter adicionado mercúrio cromo, disse, retirando os óculos:
              - Pode ir meu filho. Está pronto para outra.
              Virando-se para o pai do garoto, que ainda tentava lhe entregar o cacete foi duro e grosso:
              - Deixa de tolice, homem! Não quero pegar em pau nenhum! Isso é arenga de meninos. Amanhã já estarão de bem e brincando no meio da rua como se nada tivesse acontecido...
              Aí apareceu a mãe do Pedrão em prantos.
              - Cadê meu pobre filho?!
              Abraçando o pequeno, alarmava:
              - Que fizeram com você, ó Pedro Filho?!
              O marido consolou a mulher, dizendo que estava tudo bem.
              Novamente se dirigindo ao homem que fizera o curativo, espécie de médico cirurgião do lugar, perguntou:
              - Quanto lhe estou devendo?
              - Nada não. Pode ir a paz. E veja se um dia sim, outro não vem para renovar o curativo na cabeça do seu filho.
              Saíram amparando Pedrão, acompanhado por um séqüito de pessoas de toda idade: idosos, jovens, crianças. Aqui e acolá paravam para explicar o acontecido a algum bisbilhoteiro mais atento. Seu Pedro, sempre a apresentar a arma do crime. A mulher com cara de preocupada, comentando:
              - Pois é o filho de seu Carrinho quase mata o meu Pedrão.
              Chegaram a casa na rua de Trás. Muitos curiosos para se inteirar sobre o ocorrido. Vizinhos, amigos e conhecidos. O menino, com o curativo na cabeça, foi-se, direto para um quarto, imiscuir-se paranão ter que responder a chatice das mil e uma perguntas idiotas,pensava.
              Deixemos Pedrão em sua residência, seu Pedro se preparando para ir à Delegacia policial, mas, e Guerra? Aonde foi? Em que mundo se escondeu? Sorrateiro, soltou o cacete depois do entrevero e picou a mula. Danta, que sabe de tudo sobre o amigo, segredos e esconderijos, tinha já na mente aonde o amigo foi deixar passar as 24 horas de agonia.
              Dona Nhá, mãe de Guerra, sabendo do sucedido, andou por todas as ruas e vielas de Verdejante à procura do filho. Perguntou a gregos e troianos, nada do traquino. Ao chegar à residência de Manoel Dantas, o antigo Sacristão da Paróquia, bateu palmas, chamou:
              - Ô de casa?
              - Ô de fora.
              A resposta fora dada pelo ajudante da Igreja, guardião de todas as chaves do templo, incluindo aí o Sacrário, onde repousava a hóstia consagrada. Veio à porta, que se estando fora para se chegar à mesma, necessário subir por três batentes, atender quem chamara.
              Seu Manoel Dantas, carapina branca, constantemente mastigando as gengivas murchas, rodando o molho de chaves de todos os tamanhos no indicador da mão direita, impecavelmente metido no inseparável paletó de brim cinza sobre uma camisa de gola abotoada acima do pomo-de-adão, sorriu para dona Nhá.
              - Como vai Nhá? Entre.
              Gritou lá para dentro do casarão de paredes enormes, largas e altas:
              - Maria Romana, veja que está aqui, veio nos visitar, Nhá de Carrinho!
              Dona Nhá subiu os batentes, foi acompanhando o Sacristão pelo comprido corredor que dava numa ampla sala, onde havia grande mesa, seis cadeiras com encosto de couro e, sobre a mesa, pratos dispostos, daqui a pouco haveria a ceia da tarde.
              Maria Romana, andando num balanço ritmado de um lado para o outro, cabelos compridos e brancos, presos por um bonito pente ornamental, deu as boas vindas:
              - Ora Nhá, que prazer. Quanto tempo...
              - Não se apoquentem. Estou com pressa. Quero saber se o Danta está por aqui?
              Relatou o acontecimento, deu as explicações, agora queria notícias do filho, pois já batera os quatro cantos da cidade e não o encontrara. Com certeza o amigo inseparável saberia informar.
              O casal ficou admirado. Lamentaram bastante e responderam que Danta estava sim, lá no quintal, dando de comer às galinhas. Chamaram-no:
              - Danta! Vem cá.
              O menino, num segundo, estava na sala. Avistando a mãe do Guerra, ficou espantado. Que seria daquela vez?
              - Olha, filho, dona Nhá quer saber se você sabe aonde foi se meter o Guerra?
              Danta, arregalando os olhos, respondeu:
              - Foi para a Lagoa da Lama. Nadando.
              Os agradecimentos, as despedidas. Convite para uma xícara de café. Um até logo e dona Nhá foi direto ter com Adrião Bezerra, seu pai, avô do Guerra.
              O ancião sentado numa preguiçosa, pernas cruzadas e a bengala ao lado, lia tranquilamente o último Diário Ofical do estado, que lhe emprestara o escrivão Sebastião Paulo. Contudo, vendo a filha, não teve sobressaltos. Já estava inteirado de todo o desenrolar do fato. Já mandara um mensageiro ao compadre Ágata para segurar o menino por lá. Amanhã iria pessoalmente buscá-lo.
              - Não se preocupe. Diga a Carrinho que está tudo bem.
              - Mas o Pedro da bodega vai ou já foi ao Delegado!
              - Que vá. Amanhã resolvo essa parada.
              Dona Nhá conformou-se, pediu a bênção do pai, saiu em direção à sua morada, queria chegar logo para contar todo o desdobramento ao marido que estava num pé e noutro para dar uma lição no filho. Onde já se viu! Outro dia foi um seixo de pedra. Agora um porrete. Aonde isso vai parar? Pensava, enquanto segurava uma corda bem firme não mão.
              Dona Nhá chega e lhe passa tudo: tintim por tintim.
              - Então vou eu mesmo trazê-lo e lhe aplicar um castigo para que nunca mais arrebente cabeça de filho de ninguém.
              Retrucou a mulher:
              - Não. Papai manda dizer que deixe com ele toda a situação. Melhor trazê-lo amanhã. Os ânimos estarão mais serenados. Ele mesmo se prontificou em ir à Lagoa da Lama. E, se necessário, irá à Delegacia.
              - Está vendo a que ponto a coisa chegou? Às barras já justiça! E ele só tem doze anos. Se João estivesse aqui, aí é que Guerra saberia com quantos paus se faz uma canoa.
              João era o seu outro filho que mora, por enquanto, noutro centro, estudando para se diplomar em professor. Final do ano estará de volta, já formado. João era dez anos mais velho que Guerra.
              O resto da tarde e à noite o assunto na pequenina Verdejante não era outro: o filho de seu Carrinho, que tesoureiro da prefeitura, quase mata Pedrão, um menino bem mais alto do que o Guerra.
              Adrião Bezerra, que já fora prefeito nomeado de Verdejante, era um senhor respeitado no lugar. Pequenino, branco que nem capulho de algodão, olhinhos azuis e vivos, barba igual a de Papai Noel que voava ao toque do vento mais leve. Usava chapéu de massa e caminhava apoiado por uma bengala mandada confeccionar na Capital, por marceneiro famoso, à capricho: de cana-da-índia e envernizada, com cabo reforçado à base de alumínio dúctil. Um primor! Todos elogiavam a bengala de Adrião Bezerra.
              Sua maior fama era a de teimoso. Qualquer assunto, a menor discussão, fica do contra com o plano principal de teimar. Dizem que certa vez, quando era mais moço, Adrião Bezerra fora buscar rapadura no Cariri. Época dos comboios à base de burro manso. Certo dia, ao voltarem, arranchados debaixo de enormes árvores, à hora do almoço, um seu companheiro reclamara que a farinha estava azeda. Adrião pegou e experimentou um punhado de farinha seca. Fez um sinal para o outro, dizendo:
              - O que está azeda é a rapadura.
              Aquele que já conhecia a fama do comboieiro de Verdejante, comeu um pedaço de rapadura e... Balançou a cabeça concordando:
              - Pois sim, é mesmo a rapadura que está azeda.
              Novamente Adrião Bezerra, para discordar do amigo, sacudiu um punhado de farinha na boca e começou a matutar... Até que disse:
              - Não é a rapadura. É a farinha que está azeda.
              O outro nem polemizou mais.
              No dia seguinte ao acontecimento da cabeça lascada de Pedrão, o avô do Guerra, Adrião Bezerra, o teimoso, saiu de casa cedo, pediu ao canoeiro Chico Marim para ir à Lagoa da Lama, queria ter uma conversa com o seu compadre Ágata. O canoeiro pescador, não se fez de rogado, de pronto transportou na sua acanhada embarcação o amigo até o outro lado, próximo onde ficava a casa alpendrada do senhor Ágata, local aonde foi se esconder o Guerra
              Ao se aproximar, suspendendo o chapéu da cabecinha branca, bengala também, Adrião deu as horas ao compadre que, inteirado de todo fato, já o aguardava, tendo mandado a comadre fazer um café donzelo, acompanhado com tapioca de goma para o ilustre visitante.
              - Bom dia, compadre Ágata.
              - Boa dia, meu velho e bom amigo compadre Adrião Bezerra.      
                   Chico Marim igualmente cumprimentou o morador da Lagoa da Lama, acompanhando o seu passageiro.
                   - Se abanquem.
                   Oferecendo dois tamboretes de assento de couro, solicitou que os dois homens sentassem debaixo do alpendre.
                   Era uma casa bastante grande, toda rodeada alpendrada. Nas paredes armadores dispersos, onde se avistavam penduradas redes, arreios, cordas, chapéus de couro e toda uma parafernália útil ao homem que mora no campo. Cachorros pacíficos caminhavam por entre as pessoas, balançando o rabo dando as boas vindas. Mais adianta ficava o curral com algumas vacas leiteiras; chiqueiro de galinhas; ou aprisionando porcos. Pés de caju circundavam a residência agradável do compadre Ágata. Passarinhos, rolinhas, pintassilgos e sabiás faziam a festa de galho em galho, de uma árvore a outra, ao clarear daquele dia.
                    Logo, saiu a comadre trazendo, numa bandeja com flores, xícaras cheiinhas de café fumegante e saborosas tapiocas de goma temperadas com coco.
                    - Bom dia compadre Adrião. Prazer em revê-lo.
                    - Bom dia comadre Santa...
                    Uma comprida conversa sobre plantação, inverno, pescaria e carestia nasceu entre os três homens, enquanto a mulher recolhia as xícaras vazias. O senhor Ágata fez um cigarro de fumo de rolo, o acendeu com dificuldade imitando com a mão uma concha para evitar o vento apagar o fósforo e, conseguindo, soprou um tufo de fumaça para cima parecendo uma chaminé. Chico Marim apenas colocou na boca um pedaço de fumo, esse era mascador. Adrião Bezerra gostava de um charuto, como não havia por ali nenhum, agradeceu a oferta do amigo para que fizesse um cigarro de palha.
                    Depois de um papo animado, finalmente Adrião Bezerra perguntou pelo neto:
                    - O Guerra, está por aí?
                    - Saiu com Raimundo, meu menino, foram olhar um fojo, vê se caiu algum preá. Num instante eles voltam.
                    - Compadre e o resto da turma, cadê?
                    - Tudo dormindo. Aqui os que estudam é só na parte da tarde. Preguiçosos. Não se faz mais criança como antigamente. Só o Raimundo, mais ou menos da idade do Guerra que ficou todo o tempo de conversa com seu neto.
                    - E a minha afilhada, não vem para uma bênção do padrinho, não?
                    No mesmo instante apareceu, coçando os olhos com as mãos, a Tereza trazida pela comadre para o padrinho abençoá-la.
                    - Deus lhe faça feliz. Como está, filha está boa?
                    A menina, sonolenta, apenas balançava a cabeça afirmativamente.
                   Ainda os primeiros raios de sol apontavam, quebrando a barra, quando Guerra e Raimundo apontaram na curva do caminho. Guerra, sisudo, sem falar com ninguém, foi sentar perto do avô. Este passou a mão amigo sobre seus cabelos desalinhados, fez um ar de riso e rematou:
                    - Não é esse significado de passar a mão na cabeça que vou deixar de defender meu neto, não. Mas estando ao meu lado, ninguém mexe com você, prometo.
                   O menino fez que sim com um gesto.
                   - Conte-me aqui, na frente dos nossos amigos, como aconteceu o fato?
                   Guerra, sem se fazer de rogado, resumiu o quadro:
                   - Ele destruiu o meu ninho de rolinha, matando os dois filhotes que nem abriam os olhos, ainda. Ele avançou para cima de mim, me defendi e bati nele com um pedaço de pau.
                   - Está bem, filho. O ferimento no Pedrão pegou dez pontos. O pai do garoto levou o caso à Delegacia. Temos que ir lá dar nossas explicações. Vamos?
                   Novamente um gesto afirmativo Guerra foi se levantando. Convidou Raimundo para passar um dia com ele e Danta passarinhando no pé da serra. Os compadres se despediram. Agradecimentos e um convite para ficarem para o almoço, bastavam voltar para a rua de tarde.
                   Chico Marim, com seu remo já bem labido d'água, fazia a canoa deslizar sobre a mansa lagoa.
                   Pontualmente na hora marcada pelo Delegado, lá se encontravam Guerra e o seu avô e o pai de Pedrão. Luis Marchante entrou, voz histriônica, dando bom dia para todos. Retirou o chapéu do panamá e pendurou num torno. Sentou-se numa cadeira de palhinha por detrás de um birô antigo. Sobre o birô um tinteiro, pena de escrever, papel almaço, mata-borrão e um cepinho de arureira para segurar a papelada. Por trás do Delegado, de pé, o soldado Mariano, pronto para quaisquer diligências. E, chegando às pressas, tomando assento ao lado da autoridade, o escrivão Dé de Joca Barros.
                   - Deixa, Dé. Acho que não vai carecer nenhuma nota. Deve haver um acordo. To falando grego para os senhores?
                   - Para mim o senhor não só está falando grego, como troiano também!
                   Exclamou Pedro, pai da vítima.
                   - Por que não entendeu minha proposta?
                   - Que proposta, Luis? O senhor falou que vai sair um acordo, que acordo? Dez pontos numa cabeça rachada merecem um acordo? Exijo uma pena para o agressor!
                  Ajeitando-se na cadeira, Luiz Marchante – Delegado civil, nomeado pelo chefe político de Verdejante – falou mais histrionicamente ainda:
                  - Ta duvidando da minha honestidade! Para mim, aqui, só há um lado: o lado da verdade! Mas, antes de qualquer contenda, é a minha obrigação falar em acordo, sim, especialmente nesse caso que se trata de dois cidadãos de bem.
                  Lá fora houve um ajuntamento de pessoas, despertadas pelo estrondo do vozeirão de Luis Marchante, homem de quase dois metros, musculoso, tido como destemido. Marchante porque vendia carne no açougue. E nomeado justamente por sua fama de durão.
                     - Mas este aí, o filho de Carrinho, agrediu sem piedade meu filho...!
                 - E quem é que não sabe disso? Mas estou perguntando se o senhor aceita um acordo!
                 - O acordo que eu aceito é o menino ficar preso!
                Adrião Bezerra pediu a palavra. Concedida.
                - Criança, seu Pedro, de menor, que está sendo representada nesse instante, não comete crime, comete infração. Mesmo que tenha havido sangue. O que poderia acontecer ao meu neto eram medidas educacionais. Só. O que o delegado está dizendo é que nós dois façamos um pacto de recomendar aos nossos representados, no caso Pedro, seu filho, e Guerra, meu neto, para que não se agridam mais...
                - Mas Pedro não agrediu seu neto!
                Com calma e muita habilidade, Adrião Bezerra foi argumentando:
                - Quem lhe assegura que não? Parece-me, conversando com outros meninos que estavam no local, Guerra perguntou ao Pedrão por certo ninho de rolinha. Pedrão respondeu com rispidez dizendo que fora ele que desmanchara o ninho e foi logo se jogando para cima do Guerra. Este, num piscar de olho, esquivou-se e para se defender desferiu um golpe que, lamentavelmente, atingiu o seu filho na cabeça. Assim como saiu Pedrão golpeado, poderia ter sido o Guerra. Isto é, numa briga entre garotos um levou a pior...
                     - Palavreado bonito para consolar os tolos! Pelo menos que indenize os dias que Pedrão ficará sem sair de casa.
                     - Indenizar por quê? Pedrão não trabalha. É uma criança que vive pela rua, como todas deste lugar.
                    Luis Marchante, batendo com força no birô, assustando a todos os presente e aos que se encontravam espreitando pelas janelas, deu o caso por encerrado:
                    - Ouvi os dois! O senhor Pedro não acrescentou nada. Adrião argumentou com a segurança a conjuntura, não houve contrariedade. Logo, o caso está encerrado. O menino Guerra merece se assim quiser, uma repreensão dos próprios pais. Estimo pela recuperação do Pedrão, que a pancada não lhe tenha afetado o juízo, e ponto final. Obrigado.
                    Apertou a mão de cada um dos homens. Pegou o chapéu do panamá e foi-se, sem antes fazer algumas recomendações ao escrivão Dé de Joca Barros e advertências ao soldado Mariano para que marcasse uma reunião com os demais policiais para logo mais à tarde.
                Pedro, o bodegueiro, saiu resmungando e revoltado com a atitude do Delegado. Prometia representar contra ele no Juiz de Paz.

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RESUMO: Os dois amigos, Guerra e Danta, ficam encantados com a chegada do Circo que, ao final, tem um desfecho triste. A dificuldade de se ter uma diversão diferente nesse cafundó abençoado. Mas era assim mesmo. Vejamos o que aconteceu durante e depois do Circo, porque vem por aí os ciganos da etnia Caló.

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