segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Capitã Lili

Luiz Henrique Gurgel


Ela se assustou ao me ver correndo em sua direção. Mal soara o sinal do intervalo e disparei para a sala em que ela estava, para dar a notícia em primeira mão. Eu desviava dos alunos, saindo esbaforidos para o corredor estreito rumo ao pátio.

“Lili! Lili! Eu vou fazer Letras! Quero ser igual a você!”. 

A cara da minha ex-professora de língua portuguesa e literatura nos três anos do ensino médio era de espanto. Pareceu sentir um travo na garganta e gaguejou com falsa indignação: “Você tá louca, menina! Não! Pelo amor de Deus! Vá fazer Economia, Direito. Professora, não!”.  

Ouvi isso com ela me abraçando e sorrindo. Ficou comovida. Na hora veio à lembrança o verso drummondiano que ela nos recitava: “Vai Carlos! ser gauche na vida”. Eu devia ser a primeira aluna a dizer que queria ser professora por causa dela. 

Lili hipnotizava. Não nos controlava com broncas ou caras feias, embora também recorresse a esses “recursos pedagógicos”. Era pela transfiguração de seu corpo e de sua voz ao ler poemas, contos, crônicas, trechos de romance, cartas e até artigos de jornal que ela nos segurava. 

Éramos adolescentes e ficaríamos marcados por aquela experiência pedagógica, lúdica e literária. Lili tinha sido atriz de teatro, em seus tempos de faculdade. “Atriz das boas”, confidenciou o professor de matemática, antigo admirador platônico. No começo ninguém sabia da condição daquela estranha e simpática professora. Era uma novidade. Ao contrário do que estávamos acostumados, não ficava discorrendo gramática por todos os poros, nem percorríamos correntes literárias, suas origens, influências e autores principais, sem ver um trecho sequer daquilo que falávamos. Não, ela preferia ler para nós. Mais que isso, interpretar. Uma benção! Subia no tablado da sala e, como num palco, entrava em cena. Sem afetação, o gesto mínimo, uma folha de papel, uma revista ou um livro aberto nas mãos, caminhar ritmado de um lado a outro, voz pausada e suave, suficiente para encher a sala sem excessos: “Meu coração é um almirante louco/ que abandonou a profissão do mar/e que a vai relembrando pouco a pouco/ em casa a passear, a passear...”.

Extasiados, podíamos ouvir Drummond, Pessoa, Manuel Bandeira, Machado, Cecília Meireles, Patativa do Assaré, uma crônica de Fernando Sabino, uma carta de Clarice Lispector, de Mario Andrade ou até um artigo furibundo do jornal do bairro. Lembro mais dos poetas, claro. É que a leitura provocava um transe - "Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo..." - só quebrado ao final, quando havia comentários a fazer sobre estilo, referências, diferenças de gênero etc. etc.  Então despertávamos e voltávamos para casa com vontade de ler aquilo do mesmo jeito que ela. 

Não sei se provocava o mesmo efeito em todos. Lembro de colegas fascinados, Zeca, que sonhava ser médico; Clara, que queria ser advogada; Jô, que queria ser arquiteta, e eu, que não sabia o que queria.

Hoje caminho para ser uma orgulhosa Lili. Tal como ela, de leve esperança, de aérea esperança e, assim, me juntar a tantas outras espalhadas por salas de aula do Brasil. “Trago dentro do meu coração,/Como num cofre que se não pode fechar de cheio,/ Todos os lugares onde estive,/ Todos os portos a que cheguei”. Aquele porto eu já deixei, mas jamais sem esquecer o rondó da minha querida capitã.



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