domingo, 12 de junho de 2011

Romance de Domingo


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra



Capítulo V



         Ontem foi a última noitada do circo “Maior de Todos”. Na despedida ficou repleto como todas as 61 noites de funcionamento em Verdejante. Nenhum problema. Nenhum inconveniente até esse instante quando o dono do bode Merlim dá por falta do estimado e valioso animal.
         - Vamos todos! Rápido! O bode Merlim sumiu!
         Houve um pandemônio. Ninguém sabia para onde ir. Procura nos baús. Debaixo das lonas. Vê do outro lado. Lá embaixo. Não estaria para as bandas do Jatobá? Quem levou o bode? O adivinho encontrava-se amarrado. Gordo e forte como um touro! Nenhuma vestígio do precioso astro do circo Maior de Todos.
         A Polícia é acionada. O Delgado Luiz Marchante chega para se inteirar do que realmente aconteceu e tomar as providências.
         - O bode sumiu, Delegado!
         Exclamou o homem quase chorando.
         - Como sumiu?
         - Sumindo!
         - Quem teve a petulância de roubar tão importante artista? Sim, porque apesar de ser um bode, sabia fazer coisas que poucos humanos fariam!
         Bradou histrionicamente como sempre. Era um demagogo por excelência. Assim como sabia elogiar um bode, logo mais poderia destrata-lo na mesma medida.
         - Sei quem foi não. Ninguém sabe e ninguém viu. Já procuramos o bichinho por tudo quanto é lugar e nada...
         - Não havia um vigilante para essas ocasiões? Pelo menos durante a noite?
         - Havia. Mas parece que cegou.
         - Mas notou a sua falta a que horas?
         - Inda agorinha. Fui vê umas coisas por perto onde ele ficava sempre e... Nem sombra do nosso bode!
         O Delegado chamou três polícias, os melhores e mais espertos e ordenou:
         - Juca, Firmino e Lúcio. Vocês vão, cada um para uma das saídas da cidade: Pé de Serra, Bico Torto e Missões. Interroguem todo mundo. Estejam de espreita, vigiando o mata-burro. A qualquer sinal do bode prendam-no! Prendam o ladrão também. Vão!
         Sem outras instruções os homens saíram. Intrigados, pois sequer conduziam uma arma. Fariam o serviço somente com as mãos? E se o criminoso estiver armado? Diacho de vida, sô! Foi o que pode dizer um das milícias.
         Luiz Marchante ficou de papo com o domador do bode. Muita gente acorreu ao local, saber da novidade. Guerra e Danta lá estavam. Encontraram com Wilson. Chegaram para perto do Delegado. Ouviam o parlapatão.
         - Mas que se passa num sujeito que faz uma maldade desta! Isso é coisa de gente de fora. Da nossa cidade duvido que haja um elemento ruim assim! Mas, diga-me, ó meu bom homem: a que horas o bode foi dormir?
         - Sei não seu Delegado. Nem sei se bode dorme?
         - Ué, você não vive com seu bichinho de estimação? Como não sabe se ele dorme?
         O outro foi sentar sobre pequeno feixe de cordas. Os cães pertencentes ao circo pareciam entender o sucedido, caminhavam avexados de um lado para o outro, abanando o rabo e com sintomas de muita estricção. Aqui e acolá emitiam latidos. Agora chega o proprietário do circo. Conhecido por Sebastião Cruz do Amarante. Sua alcunha?Palhaço Pimentinha!
         - Como vai, senhor Delegado?
         - Bem, e o senhor?
         - Estaria ótimo não fosse o desfecho da nossa última noitada nesta espetacular cidade. Alguém furtou o bode, principal atração dos nossos shows. Não sei se o “Maior de Todos” ainda será o mesmo sem Merlim.
         - Ora, homem. Tenha dó. O bode Merlim na frente das garotas dançarinas era dinheiro miúdo!
         Mas o sujeito elogiara o bode, agora o desanca.
         A frase foi pronunciada com tanta força, que chamou a atenção de todos. Até operários que embutiam material em enormes caixões, parou o serviço para escutar tão potente voz.
         - O senhor não sabe calcular o valor daquele bode. Saraiva o domador, passou foi mais de dois anos para fazer o animal executar aquilo que o senhor viu tão bem: andar no arame, contar até três, cumprimentar o público e agradecer, adivinhar. Merlim só não fazia falar.
         - Espere aí, Pimentinha! Adivinhar que mulher passa chifre em marido e que marido é infiel à mulher? É isso aí...
         E num gesto de sabedoria, retirando o chapéu do panamá da cabeçorra, falou desta vez, bem mais baixo:
         - Não terá sido, por acaso, um marido revoltado por ter ele, o bode, sabido dizer que sua mulher lhe estava traindo? Ou por outra uma mulher contratou um sem vergonha para roubar o bicho, tendo em vista que soube por ele que o marido lhe era infiel?
         - Não Delegado. Caso um desses fosse o motivo, seria o contrário: a mulher se revoltaria por ter sido desmascarada, enquanto o homem enfurecia-se por ter sido revelado um segredo seu escandaloso.
         O Delegado coçou a cabeça, matutou, nem sabia o que queria dizer o contrário daquilo que tinha falado. Deixa para lá. O certo é que a desgraça estava feita.
         - E suponhamos que isso tenha sido o motivo do sumiço de Merlim, como encontraríamos o réu? Investigando a população inteira? Todos os maridos e todas as mulheres de Verdejante?
         Luiz Marchante nem ouvi o que o outro dizia. Mudou de assunto,dentro do mesmo assunto. Assim se expressou.
         - E os cachorros, seis ao todo, nem latiram com a aproximação do meliante?
         - Nada. Mudos estavam mudos continuaram até de manhã. .
         Wilson, braços cruzados, atento à palestra dos homens, exclamou:
         - Vixe!
         Danta e Guerra já sentiam cansaço por tanta lengalenga promovida pelo bendito bode, resolveram sair. Chamaram Wilson e desceram para suas casas. Danta ainda tentou argumentar que o caso do bode era importante, pois não era um bode qualquer, era o Merlim do circo Maior de Todos. Não houve como segurar Guerra por ali.
         O papo varou a manhã toda. Lá para o meio dia voltaram os soldados sem notícias do bode.
         - E aí, pessoal o que têm a me dizer?
         Indagou o Delegado que já ingerira muitas xícaras de café para continuar histrionicamente falando.
         - Nada.
         Respondeu Firmino em nome dos dois colegas.
         - Nem uma pista?
         - Nada.
         - Alguém pelo menos não viu um bode parecido?
         - Nada.
         - Com seiscentos diabos! Fizeram o serviço bem feito. Isso é coisa de profissional.
         Mão no queixo, chapéu na mão, matutou, fechou um olho, outro aberto, falou:
         - Senhor Pimentinha, vou lhe dizer uma coisa. O negócio é se conformar e partir sem Merlim. Estes meus homens, que fizeram a investigação, já descobriram coisas de sete cabeças, entendeu? E quando eles dizem que “nada”, é porque “nada” a gente vai achar por estas bandas. O senhor pode arribar com o seu circo e seja feliz. No aparecimento do bode ou alguma novidade sobre o mesmo, mando uma mensagem para o senhor, esteja o senhor onde estiver.
         Recolocou o chapéu do panamá, apertou a mão do dono do “Maior de Todos”, e mais algumas mãos estendidas e foi-se também em procura de casa porque estava com uma fome quase canina.
         As pessoas, aos poucos, iam se dispersando, comentando, lamentando, mas que se havia de fazer? A essa altura o ladrão já até pode ter comido o bode e bem assado, pois não?
         O domador, cabisbaixo, chorava baixinho com saudade do seu amigo. Quantas noites de contentamento, aplauso. Tinha vez que o bichinho emperrava, teimava em não lhe obedecer, era preciso lhe oferecer um pouquinho de ração para bode. Que tipo? Fiozinhos de capim que sempre conduzia num bolso para uma emergência... Aí Merlim se alegrava e executava o número desejado. De outra feita o bode adoeceu, ficou macambúzio. Foi um vexame. Até um doutor Veterinário – charlatão dos mais experientes – veio consultá-lo. Mas a resistência passiva do animal só sumiu com reza. Um curandeiro deu o ar da graça quando soube da tristeza de Merlim, ofereceu sua oração milagrosa. Com três dias de benzedura, recitando fórmulas estúpidas, com folhas de cipoaba desprovidas de flores, eis que o curandeiro recupera o artista, o bode que adivinha. Foi um dia de regozijo no circo. Agora essa, o seu misterioso sumiço.
          Apressaram a desarrumação do circo e os primeiros carros de boi pegaram a estrada com destino a outro lugar. Longe se ouvia o ranger das rodas no eixo dos carroções mandando um som fino que, na contagem dos minutos passando se escutava mais fraco o ranger. Era como se enviasse enviando um último adeus ao membro querido que os abandonou por obra e graça de um malfeitor. Mais tarde sairia o Ford 29 de Joaquim Relaxado com as mulheres e as crianças.
         Apesar dos pesares, ficou um oco na cidade que dava a impressão se estar num Cemitério. Foram 61 dias com sessenta e uma noites de burburinho e animação. Agora só as marcas na Rua de Maria Beltrão onde o circo fora armado. De tanto tocar a música O Ébrio muitos jovens saiam pelas ruas imitando a voz de Vicente Celestino: “Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer. Aquela ingrata que me amava e que me abandonou...” Nas esquinas e nos botecos a novidade era quem poderia saber de ciência própria quem foi o autor da façanha de roubar o bode, e que certamente o matou para comer. Enquanto isso as mocinhas, imitando as dançarinas do Maior de Todos, passaram a andar bem maquiadas, batom e ruge e um lenço no cabelo. Era a moda que pegava.
         Por muitos dias a coqueluche do momento foi o misterioso desaparecimento do bode que adivinhava.
         A vida continua e Guerra e Danta já caminhavam pela mata procurando ninhos de rolinha. Banhavam-se na lagoa. Corriam pelas vielas brincando de pega e plantavam bananeira em frente as suas residências.
         Numa manhã, quando desciam para o primeiro mergulho, Wilson vinha numa carreira destrambelhada, ofegante, alcançou os amigos e, olhos arregalados, voz entrecortada, disse:
         - Acabei de chegar de... lá!
         - De lá de onde, Wilson?
         Perguntou o Guerra.
         - Dos ciganos!
         - Que ciganos?
         - Não sabem ainda não?
         - Não!
         - Vixe! Os ciganos que estão arranchados no terreno de Júlio Marinho.
         Mais calmo, descendo as barreiras que davam na beira da lagoa, narrou o que vira. Tendas repletas de novidades. Os ciganos que sabiam ler a mão. Ciganas bonitas, com saias rodadas, graciosas, de brincos e muitas pulseiras nos braços.
         - Coisa bacana, amigos!
         Mergulharam. Brincaram de capão cozido. Quem tinha mais fôlego ficando debaixo da água. Nados até o Horto Florestal. Voltar. As horas se consumiam e, quando deram por elas, já o sol ia alto.
         Danta sugeriu:
         - Vamos olhar as tendas dos ciganos?
         - Mal o circo foi embora, chegam os ciganos. É mole?
         O comentário do Guerra. Mas assentiu com a cabeça, o que foi seguido por Wilson e, em vez de irem para casa, pois é hora do almoço, foi-se o trio rumo ao terreno de Júlio Marinho.
         Como era bonito o trânsito dos ciganos entre eles, falando uma língua estranha, o romani, ou dialeto, originário de outras línguas da Península Ibérica de onde vieram os ciganos da etnia caló que são os quase 700.000 destes conhecidos “senhores da estrada” que vivem no nosso país.
         Havia, bem no centro das diversas tendas, uma que se destacava, toda envolta em tecido brilhante de cores vermelha e azul com adesivos dourados. Estrelas, pedaços da lua e sinais de interrogação. Era a tenda onde se recebia os que quisessem consultar as quiromantes e os adivinhos que previam o que iria acontecer, bem como desvendar o que estava acontecendo com aquele que se submetesse a uma consulta.
         Geralmente eram os homens que queriam saber os pormenores nas finanças, na família e, em particular, no amor. Mulheres pouco freqüentavam esses ambientes cheios de mistério, perfumados e intrigantes. Os mexericos logo se espalhavam por toda parte, cada um fazendo juízo do outro, para o bem ou para o mal.
         Guerra, Danta e Wilson chegaram bem perto. Havia toda uma instalação como se fosse uma residência: cadeiras, mesa, malas, grandes espelhos, redes, utensílios domésticos e a trempe com fogo já aceso. Bem vestidos, os ciganos exibiam, com satisfação, dentes de ouro para chamar a atenção. Sinal de riqueza e tranqüilidade. As mulheres maquiadas e elegantes, com saias rodadas e calçadas com chinelos da moda.
         Danta comentou:
         - Estes ciganos não são que nem aqueles da turma do Zé Garcia, não. Estes são bem prontos e folgados.
         Zé Garcia era o chefe de uma turma de ciganos que perambulava por aqui, ele, certamente o mais destacado montado numa burra repleta de berloques e enfeites de prata, enquanto seus comandados vinham a pé ou em lombo de animais magros e preguiçosos.
         De repente a notícia dos ciganos se espalhou. Os curiosos encheram os arredores das tendas. Os homens, os mais afoitos, chegavam para soltar pilhérias, puxar conversa, perguntar e tentar a sorte, ou melhor, tirar a sorte no baralho com a mais bonita das cartomantes.
         Não haveria nenhum problema, porém, o preço era bem salgado. Houve disputa para ver quem entraria primeiro na tenda das consultas. Um dono de Armazém, bem forrado de dinheiro, ganhou a parada e penetrou no recinto luxuoso da ciganada. A curiosidade ficou de fora. O que iria acontecer? Um beijo? Um abraço? Troca de palavras amorosas? Ou o negociante sairia de lá com a face vermelha por uma tapa?
         Nenhuma coisa, nem outra. Como um pinto saltitante sobre migalhas, o homem vinha sorridente, espantando alguma poeira da aba do chapéu, dizendo para todos:
         - A danada sabe de tudo. Passou minha vida assim parecendo um romance: tintim, por tintim...
         Aí foi que aumentou o número de pessoas que pretendiam saber o passado e o futuro. Os mais sovinas perguntaram quanto custara a consulta. O outro, ajeitando-se todo, saindo em direção a sua morada, responde já bem longe:
         - Custaram-me os olhos da cara!
         Ih! Alguns não se habilitavam a gastar tanto. Enquanto outros se imiscuíam por entre a seda da bendita tenda e, ao voltarem, sorriso no rosto e balançando a cabeça afirmativamente:
         - A mulher é adivinha mesmo!
         Era um entra e sai que não acabava mais, até mesmo os mais renitentes resolveram fazer uma consulta.
         - Que tem isso demais? O bode Merlim também adivinhava!
         Risos. Chacota.
         Danta e Guerra, acompanhados por Wilson, não tiravam os olhos reparando quem entrava e quem saia.
         Quinca, o dono do Cartório; Filástrio, o advogado rábula; Bastião dos Correios; Alfrânio, da Aduana. Mário, o mouco. E tantos outros comerciantes e funcionários, os mais abastados.
         Guerra comentou:
         - Ainda bem que papai não se consultou, nem o Padre Benedito, meu padrinho.
         - É. Papai também não.
         - Vixe! Se o meu pai estiver por aqui, garanto que ele quer saber o que se passa lá dentro.
          - Querem saber de uma coisa? Não vou ficar aqui não! Tenho que entrar nesse troço para desvendar os mistérios de cada um.
         Disse Guerra, mexendo-se e apontando para os amigos.
         - Está é doido. Como vai conseguir se há somente uma entrada?
         Observou Danta.
         - Isso de entrar na tenda da cigana vai  ser um fuá...
         Obtemperou Wilson...


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RESUMO: Próximo capítulo e nos seguintes vai ter novidade com os ciganos. Ciganos que lêem mão, adivinham pelas cartas... Outros acontecimentos inusitados. Guerra e Danta seguem vida de meninos de rua. Mas seja qual for o fato da HORA, em Verdejante, lás estão eles assistindo a tudo. Padre Benedito Basílio Alves entra na tenda da bela cigana, mas somente no Capitulo VI. Vocês já sabem do sumiço do bode Merlim... Será que o bode/artista ainda aparece?


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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos da obra de seu pai, Walter de Brito Guerra.

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