domingo, 5 de junho de 2011

Romance de Domingo

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra



Por William Guerra*




Capítulo IV

       As duas principais ruas de Verdejante, São João Batista e Nossa Senhora da conceição, intencionalmente assim chamadas em homenagem aos padroeiros da cidade, compridas, que começam lá embaixo, de um lado a residência do farmacêutico Antonio Lopes Filho, mais conhecido como seu Tônio, e, do outro, a residência de Janoca Pade. Daí sobe as casas agarradas umas nas outras em todo o percurso, como que se amparando para não sucumbirem às intempéries e, à medida que seguem as duas ruas, vão cada vez mais se aproximando da igreja matriz, assim como duas procissões a caminharem cantando ladainhas em louvor dos santos padroeiros.
       As pessoas iam construindo suas residências e fazendo a avenida, bem larga lá no começo, ficar bem estreita no final. Parecia que todos queriam morar  pertinho do templo cristão, como quem quer ser protegido e, nas horas de oração, não ter dificuldade de chegar ao altar-mor e rezar.
       Pois essas duas ruas, frente uma para a outra, desse domingo de estréia do circo “Maior de Todos”, haveriam de ficar vazias. Todos, já se preparavam para irem assistir ao espetáculo. Muitos até compraram ingressos numerados antecipadamente, escolhendo os melhores lugares. Por volta das 18h00, já uma grande fila aguardava a abertura do portão principal. A impressão é que toda a cidade irá ao circo. Este todo iluminado (motor a diesel próprio), trazia um ar de animação, de festa para os verdejantenses. Era uma apoteose. Pela primeira vez viam de perto uma amplificadora que encimava a fachada da frente do anfiteatro, tocando músicas de Francisco Alves, Orlando Dias, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino. E “O Ébrio”, na voz deste último cantor que era o mais requisitado.
       Guerra e Danta estavam radiantes. Um verdadeiro frenesi. Disse Guerra quando ouviu a voz do locutor e lhe deram detalhes do seu funcionamento:
       - Um dia ainda vou ser locutor de uma amplificadora.
       - E eu serei o ajudante!
       Exclamou Danta.
A folgança era demais. Vendinhas com rebuçados à disposição das pessoas. Até pipoca apareceu. No ar, um entrelaçar de aromas os mais diversos: pó-de-arroz, extratos, alfazema, talco gessy-lever, alma de flores, e mais outras águas de cheiro que inundavam o ar. Inebriava.
Havia luzes que piscavam.
         Os componentes do circo apareciam vestidos a caráter. Roupas brilhosas cheias de adereços. As mulheres traziam fitas no cabelo e grandes brincos pendurados nas orelhas. Lábios com acentuadas doses de batom vermelho e muito ruge nas maçãs do rosto. Passeavam com graça, rebolando, olhares atrevidos e risos sensuais. Um incentivo aos casais de namorados, cujos mais ousados, se atreviam dar as mãos.
Dentro do circo já havia muita gente. Uns mastigando chiclete. Outros fumando. A meninada comia pipoca. Existia todo um glamour percorrendo o recinto. Gargalhadas. Conversas capciosas. Palpites. Insinuações. Pairava no ar uma conversação digna de um ambiente tão divertido e discordante. Verdejante completa estava ali, reunida, confraternizada para assistir à estréia do circo “Maior de Todos”. Era uma festa. Não restava nenhuma dúvida de que era, aquela noite de domingo em Verdejante, uma grande festa. Para completar, uma orquestra composta por instrumentos de sopro animava com marchas, valsas e outras mais.
Danta e Guerra conseguiram passar para o picadeiro e se acomodaram na areia molhada (antes de cada espetáculo, jogavam água no picadeiro e em volta, evitar a poeira levantar). Um ar bochorno começou a incomodar as pessoas. As mulheres precavidas trouxeram os seus respectivos leques e se abanavam. O circo estava inexoravelmente coberto. 20h00 pontualmente abriram-se as cortinas azuis. O cenário que secundava o palco era deslumbrante. Havia pinturas de cascatas e flores, enquanto uma enigmática figura de uma linda jovem trocava carícias com um beija-flor. O povo aplaudiu. Foi um delírio. Estava mais para fascínio aquela visão.
       Um jovem de cabeleira basta, bigode e metido em roupa à la toureiro surgiu e foi direito a um enorme microfone preso no alto de um pedestal de ferro. Dele saia um fio que se enroscava cenário adentro.
       - Senhoras e senhores. Homens, mulheres, jovens e crianças de Verdejante, bem vindos ao circo “Maior de Todos”. Boa noite!
       A turba, uníssona, respondeu:
       - Boa noite!
       O locutor, sorrindo, apresentando dentes brancos e perfeitos continuou:
       - O show vai começar! Antes, em nome de todos os que fazem esta Casa de diversões, queremos dizer que estamos bastante satisfeito pelo calor e receptividade de todos desta cidade bela e acolhedora.
       Aplausos. Risos. Assobios. Jogaram serpentinas pelo ar.
       - E para nosso primeiro número vem aí, para o deleite de vocês, o casal de trapezistas Horácio e Helena...
       E saiu aplaudindo acompanhado pela multidão naquela manifestação. O casal era de uma beleza comovente. Silêncio total, enquanto homem e mulher se exibiam num trapézio bastante alto.
       Em seguida uma contorcionista. Depois dançarinas e cantores. A Arara adestrada andava sobre um arame e pegava em pedacinhos de tábua de cor. A cada comando, indicando a cor que preferia, a ave segurava com a sua proeminência córnea a correspondente e a colocava dentro de uma caixinha. Fantástico! Depois foi tocada uma música pela orquestra da Companhia, e a Arara se balançava no seu ritmo. Apoteótico!
       Chegou a vez de o primeiro palhaço fazer o povo dar risada.
       - E com vocês! Lasquinha!
       Lá veio Lasquinha. Baixinho e com um sapato de bico comprido e curvado para cima. Roupão folgado e colorido. Cara de palhaço e, na cabeça, uma espécie de tampa presa sobre o cabelo em forma de prego. O palhaço chegou dizendo, enquanto rodava a tampa com um dedo:
       - E a tampa rodando!
       Gargalhada. A garotada se divertia. Piadas. Adivinhações. Aposta para vê quem sabia o que o outro estava pensando. Lasquinha perdeu duas vezes. Na terceira, apostaram todas as moedas dos bolsos. Lasquinha falou:
       - Agora vou dizer em que você está pensando.
          E arrematava:
       - E a tampa rodando!
       - Vai, vai, vai. Lasquinha, em que estou pensando neste momento?
       Lasquinha pensou... Andou para um lado, para o outro. Olhava para cima, mão no queixo. O outro insistiu:
       - Responda: em que estou pensando?
       O palhaço Lasquinha falou:
       - Você está pensando que eu penso que sei no que você está pensando. Mas como eu não estou pensando no que você não pensa você pensa que vai ganhar as pratas sem pensar... Mas nem pense nisso...
       Pegou as moedas e saiu correndo lá para dentro do circo enquanto o seu companheiro o seguia bradando impropérios no ar.
       Gargalhadas sonoras. Houve pessoas que riam até sentir uma dor na barriga. Outras choravam de tanto rir. A meninada gritava e ria a valer. Houve um que se viu em incontinência urinária. Os demais o apuparam. Gozação.
       Reaparece o locutor, agora metido num paletó azul-marinho. Gravata borboleta. Uma elegância fora de série. Anunciou:
       - Com vocês, o bode que adivinha. Pedimos silencia e prestem a atenção na inteligência desse macho da cabra. Aplausos para Merlim!
       O bode tinha nome de bruxo. Além de adivinho seria o bode, um alquimista?
       O seu domador, com roupa adequada ao número: calça de mescla azul e camisa de riscado com mangas compridas e, na cabeça, um chapéu de palha.
       - Boa noite!
       O sujeito era metido a engraçado, ainda por cima.
       A resposta do público não lhe agradou, pois desejava uma “boa noite” espetaculosa.
       - Boa nooooiiiitttteeeeeee!
       Berrou igual a um bode. Pediu com muita instância.
       E o povo:
       - Boooaaaa noooooiiittttteeeeee!
       - É assim que gosto. Agora façam silêncio para que o Merlim possa se concentrar.
       Convidou um homem da platéia. Apresentou-se Tonico, cheio de bolocobó, feito pirarucu.
       - Fique em paz. Sua digníssima esposa está em casa?
       - Não, está aqui.
       - Então vai se sentar, porque assim vai ter briga já já.
       Os espectadores caiam na risada.
       O homem voltou, com seus trejeitos aquáticos, ao seu assento.
       - Bem. Ô Merlim! Se aqui tem alguma mulher que pula a cerca, por favor, vá indicar a danada, pois o marido tem que saber nem que seja por derradeiro.
       O caprino, saia rodopiando pelo picadeiro. Voltava. Ameaçava correr. Pulava. Até que se chegou perto de uma mulher e... Deitou a cabeça em seu colo.
       Aplausos! Que interessante! Onde já se viu?!       
       A dita cuja escolhida pelo bode era a esposa de Zé Mariano, o dono da Padaria. O homem estava ao lado da mulher. Ficou vermelho, meio desconfiado, depois riu. A senhora, pessoa delicada e séria fez um gesto de acanhamento e falou com voz alterada:
       - Felizmente, Merlim! Eu não pulava nem quando brincava de amarelinha, imagine pular a cerca!?
       Gargalhada por toda parte.
       E o bode continuou apontando, ou melhor, escolhendo mulheres para revelar que elas eram falsas ao marido. Claro que era só brincadeira, palhaçada, divertimento. Servia para os cochichos, os sussurros, as piadas de bom gosto.
       Depois de alguns instantes, o domador do bode anunciou:
       - Amanhã Merlim vai dizer quais os maridos que são infiéis! Aí é a aonde a porca torce o rabo! Por hoje é só e muito agradecido.
         Dando umas tapinhas nos chifres de Merlim, ordenou:
       - Cumprimenta o povo, bode mentiroso!
       Enquanto as pessoas riam a valer, o animal dobrava uma perna dianteira e, abaixando a cabeça, imitava um gesto de submissão.
       Em seguida foi anunciada a vinda ao picadeiro do palhaço Pimentinha.
       Entrada triunfal. Correndo feito doido. Chapéu coco na cabeça. Mal vestido que só vendo, algo de propósito. Suas calças eram sustentadas por enormes suspensórios. Trazia uma bengala e, sua gravata, dependendo da fala e do gesto, esticava, parecendo um troço que se alevantava e crescia para frente, o que provocava uma alegria incontrolável nos presentes.
       Contou piadas. Fez adivinhações. Ao final, perguntou ao companheiro:
       - Qual a diferença da negra para mandioca?
       O outro pensou. Matutou. Coçou a cabeça.
       - Não sei.  Qual a diferença da nega para mandioca, Pimentinha?
       Fez a gravata arquear, deu uma risada:
       - Não sabe não, é? Nunca pegasse numa mandioca? Pois toda noite eu pego a mandioca e... Boto pra cozinhar e como! Vou dizer a diferença: É que com a mandioca, você desmancha e faz um bolo pé-de-moleque. E com a mandioca na nega você faz um moleque inteiro!
       O circo quase veio abaixo com as gargalhadas, não pela piada que já era conhecida, mas pela maneira de Pimentinha conta-la, sempre levantando a gravata tornando-a ereta...
       Agora iria começar a segunda parte do espetáculo. Baixam-se as cortinas. O povo se levanta. Alguns vão lá fora, tomar ar fresco. Os portões se abrem e qualquer um, mesmo sem pagar, agora entra para assistir o drama que será apresentado pelos atores circenses.
       Depois de dez minutos o locutor anuncia, levantando as cortinas e aparecendo novo cenário. Uma paisagem como se fosse uma rua mal iluminada, com casas de porta e janela.
       - Atenção. Hoje apresentaremos a comédia O Padre e a Mulher do Leiteiro!
       Peça em três atos. Fim.
       Guerra e Danta voltavam para casa, conversando animadamente. Ao lado deles, Wilson, sempre entusiasmado. Comentou Danta:
       - Viram como Pimentinha é engraçado?
       Wilson concordou:
       - Vixe! É sim!
       Guerra gostou mais do mestre de cerimônia:
       - Prestaram à atenção na voz do locutor?
       Danta dizia:
       - Mas tem uma pessoa controlando as músicas e o microfone!
       - Vixe! Tem-se!
       O comentário bem resumido feito por Wilson.
       As pessoas caminhavam cada qual para sua residência, cada macaco no seu galho. Uns abrindo a boca, o sono chegava. Outras espertas e já anunciando que amanhã voltariam ao circo oura vez.
       Danta foi com seus pais, Wilson desceu pela Rua do Alto, enquanto Guerra dobrou uma esquina e acompanhou o Vigário, seu padrinho, que também assistira ao espetáculo. Antes de abrir a porta, o Vigário ouviu gemidos para o lado do patamar da igreja. Dois vultos se enroscavam por detrás do Cruzeiro... Padre Benedito foi até lá. Guerra o seguiu.
       - Que vocês estão fazendo aqui? Suas coisas?!
       Os dois sujeitos não esperavam serem flagrados. Assustados, nem tiveram tempo de vestirem as calças. Correram rua abaixo, com medo de serem reconhecidos, nus igual quando vieram ao mundo. Tarde demais, pois Guerra os reconheceu. Contudo, passando os nomes dos amantes ao Padre Benedito, este lhe ordenou que não contasse o sucedido a ninguém, nem ao Danta. Guerra abaixou a cabeça e fez um gesto com a cabeça, dizendo, inocentemente:
           - Sim senhor.

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RESUMO do próximo capítulo:
O sumiço do bode adivinho. Escaramuças e o parlapatão do Delegado ineficiente que só ele querendo demonstrar sabedoria. Nada. Vamos ler e tirar as nossas conclusões sobre o sumiço de Merlim (o bode do circo). O final do Capítulo IV traz mais uma novidade... Qual será a nova na cidade Verdejante?


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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos da obra de seu pai, Walter de Brito Guerra.

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