Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
Por William Guerra*
CAPÍTULO XIII
Dona Nhá, mãe de Guerra, disse-lhe que amanhã seu irmão João Batista estaria de volta. Chegaria pela tarde, vindo de trem até Caraúbas, dali Jacó já o aguardava com o seu cavalo Pedrês.
Guerra nada disse. Jantou um prato de arroz de leite com carne assada. Socorro lhe ofereceu café com pão. Disse que não. Tomou água dormida no pote. Saiu para dentro da noite, foi encontrar os amigos de brinquedo pelas ruas semi-escuras de Verdejante.
Lá já se encontravam Danta e Wilson, e os demais colegas de folguedos. Ao avistá-lo, Dante aproximou-se, perguntar do que deveriam brincar, hoje. Era sempre assim, Guerra fazia o papel de chefe das brincadeiras que deveriam acontecer. Ele quem escolhia qual a peripécia a ser colocada em prática. Todos obedeciam. O menino mais sagaz, mais sabido da tropa.
A garotada parece até que já esqueceu do triste acontecimento que foi a invasão dos cangaceiros. A morte de Rodrigues de Adélia. Para os meninos, aquilo já fazia tanto tempo que não se lembravam mesmo. O negócio deles era brincar, alegria e a conquista do mundo se possível. Essas coisas difíceis deixa que os adultos resolvam.
Danta chega mais perto do amigo, nota que Guerra está macambúzio, cabeça baixa. Capta a mensagem: algo o está perturbando. Indaga:
- Que é Guerra? Que aconteceu? Parece que você está no mundo da lua?
Guerra não responde. Apenas fala que a brincadeira é de esconde-esconde e que o último a chegar ao tronco do pé-de-figo que fica em frente à sua casa, vai ser a barata e tem que contar até dez, enquanto os demais iriam se esconder. Todos obedeceram. Danta ficou com a pulga detrás da orelha, pois o Guerra não estava à vontade.
A algazarra tem início. Saem correndo para se esconderem mo muro da Legião; por trás do calçadão da casa de Luis Leite; detrás da preguiçosa de Quinca de Lindolfo, eternamente armada na calçada de tijolos; outros vão para o beco João de Brito; para dentro da casa de Adrião Bezerra... E assim, cada um tem que ficar o mais escondido possível. Aquele que ficou para ir revelar pelo menos um, ao avistar o primeiro escondido passa para o lado dos que têm que se esconder. O achado permanece para ir descobrir a todos novamente. E assim sucessivamente.
Wilson foi o próximo descoberto. Agora teria que ir procurar os amigos. Ficou recostado no pé-de-figo, cabeça baixa, contando 1, 2, 3... até 10, aí saia correndo em busca de algum dos escondidos.
O brinquedo não empolgou Guerra. Parou, foi até uma calçada e sentou. Danta veio ter com o amigo. Wilson chega correndo gritando alto:
- Peguei! É Danta quem vai procurar, agora!
Danta avisa que ele e Guerra estão fora da brincadeira.
- Vixe! E por quê?
Data respondeu por ele e por Guerra:
- Porque sim, ora!
Wilson, sentando desconsolado, aderiu à preguiça:
- Sendo assim, eu também estou fora do esconde-esconde.
Os demais, vendo que não havia futuro no brinquedo, vieram todos e ficaram por ali pilheriando, enrolando o tempo aguardando que os pais os chamassem para dormir. Mas mesmo assim, a atenção voltava-se toda para Guerra. O que ele tinha? Perguntavam-se os amigos, sem demonstrarem que queriam saber de alguma coisa Danta, o mais chegado, teve a petulância de perguntar:
- Guerra o que está acontecendo?
O filho de Carrinho e dona Nhá levantou-se, saiu apressado, rumo ao patamar da igreja. A turba o seguiu. Tinha mais a ver com um chefe de bandidos mirins: Guerra na frente, a cambada atrás, todos prontos para quaisquer empreitadas. Deram a volta no Cruzeiro, subiram o patamar, Guerra foi sentar no último batente, e os outros, também.
O centro das atenções, o líder, aquele que dava ordens, Guerra, arriou para trás, ficou deitado, papo para o ar. Lá em cima, bem longe, brilhavam as estrelas. Milhões delas. Piscavam assim como uma garota pisca o olho para o namorado. Não tinha uma lua. Ela sairia mais tarde para acompanhar os enamorados em românticas serenatas.
Wilson imitou Guerra, deitou. Os outros igualmente ficaram de papo para o ar. Danta continuou sentado, entortando os dedos para trás, estralando as juntas, demonstrando nervosismo. Sempre foi nervoso, Danta. Ficava preocupado com qualquer coisa. Até aquele repentino silêncio do amigo inseparável. Teria sido ele, Danta, o motivo daquele estado de isolado? Alheio aos comentários dos demais companheiros? Pensava Danta lá com os seus botões. Não agüentando a angústia, tinha que irritar o amigo, não havia outra saída:
- E aí Guerra, vai dizer ou não o que está acontecendo?
Guerra impassível. Na dele. Contemplando o firmamento belo, misterioso e sem fim. Nada lhe tirava a atenção daquele mundo de luzes na longitude do Universo. Como era intrigante os fenômenos naturais. Guerra pensava: Como elas se sustentam? Seriam atadas a algum cordão, como fazem com as bandeirolas nas barras de Nossa Senhora da Conceição?
Enquanto isso os seus amigos de peripécias ficavam sem saber o que dizer, mesmo olhando para cima, nada pensavam, viam igualmente as estrelas, mas não teorizavam uma vez que queriam saber o que se passava com ele, o menino prioritário, para ficar assim, repentinamente, tão silencioso.
O susto foi intenso. Ninguém esperava. Absortos e paralisados, todos, de uma só vez, como um bando de nhambus arribam de um pombal depois do primeiro tiro do caçador, saíram em disparada. Guerra levantou de um salto e gritou que ouvira umas pisadas dentro da igreja. Parecia alma penada.
A meninada ficou assombrada. Lá embaixo, depois da praça, ofegantes, olhos arregalados, falando com dificuldade, eles perguntavam:
- Que foi aquilo?
- Vocês ouviram?
- Foi mesmo uma alma que bateu lá por dentro?
- E alma bate nas coisas?
- Elas andam fazendo barulho?
Guerra ria. Os outros amedrontados, ele ria à bandeira desfraldada. Ria sem parar. Botava lágrimas de tanto rir. Os demais foram se acostumando... Olhando o amigo rindo... Voltando ao senso normal. Começaram a rir também. Danta era o mais serelepe. Agora queria distância do patamar da igreja, principalmente à noite. Mas ficou intrigado.
- Fala guerra, você disse que ouviu passos ou barulho dentro da igreja. Por que está achando tanta graça?
Guerra foi parando bem devagar. Recompondo-se de tanta alegria, enquanto os outros ainda sentiam um pouco de pavor. Até que, pausadamente, explicou aos amigos:
- Eu vi quando seu Manoel Dantas, o pai de Danta, entrou na igreja por uma porta lateral. E que, alguma batida lá por dentro, só podia ser ele. Aí eu inventei que fora uma alma.
Os demais caíram na risada, também. Retardadamente, mas riram para valer. Agora ficavam apontando uns para os outros. Cada qual mostrando qual o que ficara mais assombrado. Quem correra mais. E, ao mesmo tempo, defendiam-se das insinuações. Uns diziam que não tivera medo. Outros confessavam, mas que sabiam que era somente brincadeira de mau gosto do Guerra. E assim iam se justificando, combinando nas afirmações e, sentando-se todos na areia, de frente à Legião, Guerra ordenou que fossem contar estórias de assombração. Danta não gostou da idéia.
- Ora, você, Guerra, estava tão triste. Como pode agora querer que a gente conta estórias para deixar a gente com mais medo ainda?
Wilson admirou-se:
- Vixe! E agora, como é que vou para casa e passar no beco da finada dona Benvinda?
Os demais nada disseram. Apenas riram do medroso Wilson. Mas Guerra admoestou, botando lenha na fogueira:
- Você se vire Wilson. Por aquele beco anda uma alma penada de uma velha carcomida.
O menino ficou com tanto medo, que se achegou mais para o centro da roda de amigos, pensando com isso que o seu medo seria anulado. Mas não foi o que aconteceu. Depois das estórias, Wilson pediu a Guerra e Danta que o acompanhasse pelo menos até perto de sua casa. E assim foi acordado. Quando os tr~es meninos ficaram a uma distância de uns cinqüenta metros da residência de Wilson, deixaram-no, e imediatamente retrocederam correndo. Wilson, feito um Pégaso com assas e tudo, voou para dentro de casa. O medo o consumia.
Os outros meninos já haviam sumido cada um tomou o rumo de casa. Guerra e Danta ficaram sozinhos no meio da rua. Foram para debaixo do pé-de-figo que se situava em frente à residência de Guerra. Este puxou conversa:
- Amanhã chega o meu irmão João Batista.
Danta teve um leve sobressalto. Lembrou da falta de ânimo do amigo até bem pouco tempo. Comentou:
- Então era isso que o estava deixando arredio. Ou seja, sem querer brincar nem dizer nada?
- Sim.
Guerra pegou umas bolinhas, bem miúdas, que caíam da árvore amiga. Sem se preocupar com nada, colocava de uma a uma na boca, mastigava e cuspia longe. Esse gesto fazia-o automaticamente, sem saber o que realmente estava fazendo. Um hábito que adquirira cada vez que ficava horas debaixo do seu preferido pé-de-figo. Sim porque em frente às residências de Verdejantes havia muitas daquelas arvoras que davam uma sombra muito boa. As folhas ficavam sempre verdes. Outras árvores também enfeitavam as poucas ruas da cidade. Timbaúbas gigantes e tamarindos, além de pés-de-cajarana nos quintais.
Danta continuou o papo:
- Mas homem, devia ficar alegre com a volta do seu irmão.
Guerra respondeu:
- E quem lhe disse que eu não estou?
- Parece que não...
Guerra concluiu:
- É que ele vai me obrigar a aprender a gramática, a fazer conta. Essas coisas que eu não quero.
Danta nada disse. Ficaram alguns momentos em silêncio. Conversaram sobre os últimos acontecimentos. Repassaram a história do bode Merlim. A astúcia de Guerra em ouvir a cigana dentro da tenda. A invasão dos cangaceiros.
- E o tal de Vento Solto? Soltaram-no?
Perguntou Danta, avaliando que Guerra sabia mais sobre o assunto. De fato sabia. Guerra explicou:
- Vento Solto virou morador do prefeito Lucas Pinto. Não vai mais embora de Verdejante. Vai ficar por aqui trabalhando no terreno Apanha Peixe. Ouvi meu pai falando isso.
Encontravam-se assim, sem se preocuparem com a vida. Quando ouviram um grito de mulher vindo lá de cima. Era dona Joana chamando Danta para entrar em casa, Manoel Dantas iria fechar a porta.
- Até amanhã, Guerra.
- Até amanhã, Danta.
Combinaram que bem cedo iriam caçar ninho de rolinha. Um banho na lagoa e depois ficariam na entrada da cidade, no mata-burro do alto de Zé Albino, aguardar a chegada do professor João Batista Guerra.
Carrinho, o pai de Guerra, ainda não estava dormindo. Deitado numa rede listrada, chamou Guerra e mandou que ele sentasse numa das beiradas. Abraçou-o e o beijou na testa. Rio com aquele riso que somente os pais têm para os filhos. Começou a falar para Guerra.
- Filho, você está grandinho, precisa aprende as lições. Veja o seu irmão, agora o nosso orgulho. Professor. O primeiro professor diplomado de Verdejante. Eu quero o seu bem. Amanhã ou depois nem eu nem sua mãe, nem seu avô Adrião estaremos vivos. E você terá que seguir em frente. Vai quere casar e ter filhos. E quem não tiver estudo não vence na vida.
Guerra ouviu aquelas palavras do seu pai tão comovidamente, que deitou, colocou a cabeça no seu peito. Ouvia as batidas do seu coração. Carrinho não viu, mas saíram duas lágrimas dos olhos vivos do filho. Guerra chorava sem permitir que o pai o visse chorando. O homem respeitado na cidade como tesourei honesto e dedicado da Prefeitura, passou a mão de leve nos cabelos sujos de terra do filho. Não disse nada, nenhuma reclamação. Apenas riu para si mesmo. Aquela união de amor entre pai e filho, quem os observasse, ficaria comovido também.
- Sabe Guerra. Eu também fui criança. Menino arredio, briguento... Fiz tudo o que hoje você faz pelas vielas da nossa terra. Meu pai me ensinou a ser uma pessoa boa. E me botou numa escola para eu aprender o A, B, C e aprender para a vida. Não sou rico, sou pobre. Mas ninguém em desmoraliza. Ninguém tem o direito de me atirar uma pedra por alguma coisa errada que venha fazer contra o meu semelhante contra Deus. O mundo ensina o que os nossos pais não podem ensinar. Por isso eu lhe digo, seja como João Batista, seu irmão. Aprende com ele. Estuda que será um grande homem.
O menino já quase soluçava. Levantou a cabeça, olhou o pai nos olhos. Carrinho enxugou seu rosto tostado pelo sol. Guerra conseguiu falar com a voz embargada:
- Pai, eu amo o senhor e a minha mãe ao meu irmão. Eu não queria aprender essas coisas dos livros. Eu quero ser uma pessoa do mato, caçar, viver livre que nem a Juriti, como o Pintassilgo que voa livre e canta, sem que ninguém tenha ensinado, uma canção tão bonita na copa das árvores...
E recostou outra vez sua cabeça no peito do pai. Sentiu a ternura que lhe era transmitida pelo calor que emanava daquele homem de estatura baixa, magro e tão eficiente no trabalho. Ficaram por alguns instantes em silêncio. A lamparina que alumiava a sala onde a rede fora armada, estava bem branda, consumia avidamente o combustível que a fazia manter o pavio sempre aceso. Lá fora os cães ladravam. Um ou outro transeunte passava assobiando. As horas se adiantavam e, Guerra dormiu. Sua mãe, Nhá, veio para ajudar Carrinho a acomodar o garoto na rede, enquanto se ouvia, bem longe, um som de violão e uma voz maviosa que cantava: “...E lua cortando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão...”
Carrinho foi até a janela e a abriu. A lufada de um vento agradável bateu no seu rosto. Olhou para os lados do nascente, descobriu que uma grande lua surgia lá por trás do Vale. Daqui a pouco o galo do terreiro iria cantar. O mundo descansava em paz.
Nhá veio e ficou do seu lado. Ambos ouviam a canção ao longe. Olhavam para lua bela sem igual. Aquele casal de tanta união e acostumados com suas maneiras e temperamentos, de tantos anos de convivência, pensavam no outro filho que havia de chegar. Qual o seu futuro naquela cidade pequena, mas de política tão renhida? O que, afinal, João batista Guerra fará para pôr em prática o que aprendera como professor diplomado?
- Sabe mulher. Estou aqui pensando. João chega diplomado. Não há sequer uma escola pública. Duas somente e particulares. Qual o futuro do nosso filho aqui? Ele é adepto dos liberais, gosta de se envolver em política, amigo do Coronel Dito Saldanha, contra os Pinto, como será daqui para frente, agora que ele possui um Diploma e vai querer fazer uso dele? E ainda por cima essa pendenga com a invasão dos cangaceiros para matar Chico Pinto, a mando de alguém?
Nhá, pensativa, também disse algumas palavras:
- Eu também me preocupo. Ainda bem que ele nem estava por aqui quando aconteceu essa tal de invasão. Mas fico pensando: ele está noivo de Faci, a filha de Seutônio farmacêutico. Não vai querer ir para outro lugar. Fará alguma coisa por aqui mesmo. O que, só Deus sabe! Por outro lado, quando ele veio nas férias do ano passado, andou com o Coronel Dito Saldanha, Alfredo de Terta e Palpito. Tive notícias de que fizeram alguns estragos para as bandas da cidade de Assu. Essa amizade dele com o Coronel é o que mais me preocupa. O povo todo gosta muito dele, nós sabemos. Até tem gente falando que quer ele como prefeito de Verdejante. Você sabe Carrinho, ele é político por natureza. E isso é o que me tira o sono. A politicagem em Verdejante é uma coisa ruim. Maldade. Violência. Para completar inventaram de contratar pistoleiros para matar o adversário. Estou receosa com o nosso filho João. O que será dele, aqui? Casa, a moça é gente fina, de boa família. Mas e o que ele fará? Viver trabalhando no que? Professor? Onde?
Carrinho ouviu toda a lamúria da mulher. Fumante, já havia durante aquele intervalo de tempo fumado quase dez cigarros que tinham o nome de “Astória”. Vinham embalados num papel amarelo e o nome em letras bem visíveis de cor preta.
Foi entrando, pesaroso, com sono, mandou que Nhá fechasse a janela. Disse apenas isso:
- Seja o que Deus quiser.
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RESUMO: Nos próximos capítulos muita agitação. Novidades com a chegada do professor João Batista Guerra. Os meninos Danta e Guerra estarão no centro de tudo? Padre Benedito Alves será o bombeiro nas ocasiões beligerantes de ambos os lados? Coronel Chico Pinto x Coronel Benedito Saldanha. Vamos aguardar.
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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.
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