Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
CAPÍTULO IX
O assunto do sermão improvisado do padre Benedito se defendendo das insinuações, logo estava nos quatro cantos de toda a cidade. Voou nas asas do vento, direto na boca do povo.
Em cada lar, cada esquina, cada ambiente se comentava o sucedido na igreja. A missa não teve importância, o importante foi a oratória do Vigário. As pessoas comentavam aumentando o que viram e o que não viram na igreja. Houve até quem dissesse que combateram braço a braço, às pancadas: as três beatas e o padre. O povo é pródigo em criar e, em casos assim com cabeça, tronco e membros a coisa avoluma-se, cresce, que, lá no final, já não se pensa numa defesa paroquial, mas numa grande intriga que pode render anos e chegar às barras dos Tribunais.
Danta, que não tinha ido à missa, pois dormira até altas horas, já procurava o amigo para se inteirar do assunto. Ouviu seu pai, Manoel Dantas, o Sacristão narrar o acontecimento na perspectiva do Cura, seu amigo e patrão, elogiando às alturas a atitude corajosa do filho do tesoureiro Carrinho, o menino janota que colocou Tilde, Cotó e Adofina nos seus devidos lugares.
- Guerra é cabra de sangue no olho!
Exclamara Manoel Dantas, enquanto mastigava as gengivas. Sua mulher, Joana atiçava as brasas no fogão, pretendia estirar uns panos que lavara ontem, chamava o vento por intermédio de São Lourenço. Danta ouvira tudo e saiu correndo a procura de Guerra.
A manhã já estava se acabando, daqui a pouco chegava à hora do apogeu, Danta encontrou o amigo em cima do pé de cajarana. Assoviva, tentando chamar uns canários que saltitavam por ali. Armara a alçapão. A gaiola ficou enganchada numa velha cerca lá nos fundos. Guerra colocou o dedo indicado no meio dos lábios:
- Psiu... Vê se a gente pega aquele canário amarelinho. O bicho parece ser bom de briga, canta estralando...
Danta obedeceu e, pé, ante-pé chegou-se na árvore amiga e subiu feito uma preguiça, só na pachorra.
- Colocou o quê de isca...?
- Melões-de-são-caetano.
- Isca de primeira. Os passarinhos não podem sentir o cheiro... Descem e vão comer os melões. Boa ideia, Guerra...
Comentou Danta. Ficaram imóveis, quase prendendo a respiração quando chega fazendo o maior barulho, Wilson. Ofegante. Veio como sempre, correndo, desejoso de contar logo aos amigos as últimas novidades. Isso mesmo, em Verdejante, pequena, pacata e sem muita vida, qualquer tombo, rusga, poeira levantando no eito, transforma-se em grande notícia ou novidade importante.
- Vixe! Parece que vocês ainda não souberam!
Guerra quase teve um treco, o alarma de Wilson afugentou os passarinhos que estavam quase a caírem na cilada armada com o alçapão.
- Que é que há Wilson! Veja o que você fez, suas novidades espantaram os canários que luto para pegar! Está doido?
O amigo recuou, sequer subiu na árvore. Ficou a olhar, atônito, para um lado e para o outro, como que procurando o local da gaiola que serviria de prisão a mais uma ave, pois Guerra já possuía algumas com graúna, cabeça vermelha, miúdo e casal de canário.
- Perdão Guerra, não reparei logo, por isso gritei porque a novidade pega fogo lá nas tendas dos ciganos!
Aí a coisa muda de figura. Danta e Guerra, automaticamente, pularam dos galhos onde estavam e chegam perto de Wilson:
- Qual novidade, homem?
Indagou Danta, todo ele curiosidade. Guerra também fez a sua pergunta:
- Revelaram quem colocou rolamento em pescoço de caburé?
- Ah... Se fosse só isso...
A curiosidade dos amigos duplicou. Chegaram mais perto, um de cada lado da gazetilha, indagaram ameaçadoramente:
- Desembucha! Que foi que aconteceu? Deixa de suspense senão eu faço um dos seus olhos dois limões!
Wilson caminhou até o fundo do quintal, próximo à gaiola, respondeu pausadamente:
- A cigana revelou o nome do sujeito que roubou o bode Merlim... Até o delegado, padre Benedito e o perfeito Lucas Pinto estão todos lá... Um qüiproquó dos diabos!
Os garotos saíram apressados, rumo ao terreno de Júlio Marinho que ficava do outro lado da cidade. Guerra nem recolheu a gaiola e o alçapão que ficou armada e com os melões-de-são-caetano chamando os passarinhos para a prisão.
Longe ainda avistaram a multidão empenhada e conseguir uma pista, saber qual o nome do matador do bode adivinho ou outra coisa interessante que confirme qualquer indício do misterioso sumiço de Merlim, que pertencia ao circo Maior de Todos.
Ao chegarem bem perto, ouviram a voz sempre histriônica do delegado Luiz Marchante:
- Bem que eu desconfiada daquele malfazejo! Tenho mais, eu assegurei que o ladrão não era de Verdejante, deveria ser um pé rapado vindo do oco do mundo só para nos fazer maldade! E aí está, eu estava certo.
O prefeito, homem magro e magro até demais, sungava as calças que teimavam em descer, fungando e com gestos de comando dizia, com voz fanhosa, resultado de uma operação de sinusite que no passado quase o levou à cova:
- Cadê os soldados para irem atrás do meliante? Onde é que o indivíduo mora? Prendam-no que ele tem que pagar pelo bode!
Silêncio. Ninguém sabe onde mora o perverso que matou Merlim. Ou há alguma cumplicidade? Coisa esquisita, pois geralmente em cidade pequena é algo que todos se conhecem e sabem onde reside cada um, sem dificuldade. Mas o homem que deu fim ao bode do circo Maior de Todos, ninguém dava notícia. Assim fica bastante prejudicada a busca ao carrasco do bode. Não seria o caso de perguntar à cigana o paradeiro daquele, uma vez que ela revelara o nome, agora poderia, com facilidade, dizer onde o mesmo reside. Isso passou pela cabeça de padre Benedito:
- Sugiro que peçamos à cartomante adivinha, que nos mostre onde encontrar o patife que surrupiou o bode que adivinhava?
Sugestão aprovada por unanimidade. Aplauso. Mas restava um empecilho: o fazendeiro Chico Longo, que ouvira da cartomante o nome daquele que roubou o bode, não se encontrava mais por ali e, pelo que se comentava, somente ele poderia fazer essa pergunta à mulher, onde mora o réu?
Novas sugestões. Nhem nhem nhem para cá e para acolá, um puxa encolhe sem fim, não se chegava a nenhum denominador, foi quando aconteceu o inesperado.
Guerra, Danta e Wilson, com mais alguns meninos, misturados aos adultos, não perdiam nenhum detalhe. Apuravam os ouvidos e, atentos, gravavam cada minudência da conversação sobre a captura, daqui a pouco, do verdadeiro ladrão do bode artista do circo Maior de Todos que, bem longe se encontrava, ainda sofria da falta do seu maior astro.
Abrindo caminho entre os que se encontravam em volta das principais figuras daquela assembléia, um homem atarracado, chapéu de couro no cocuruto careca, barba por fazer, roupa surrada, calçando umas botinas já cheias de furos, soltava impropérios os mais inaudíveis possíveis, caso alguma senhora estivesse presente, pois esse era o costume, até mesmo diante de crianças não se pronunciava aquilo. Aparentava ter mais de 30 anos.
O delegado, adiantando-se, ordenou que o intrometido parasse e se retratasse, antes de lhe dá ordem de prisão.
- Quem é você, forasteiro, que aparece feito visagem, se uma hora para outra num lugar onde não é chamado?
O sujeito, que agora era a atração naquela roda, respondeu com voz tão histriônica ou até mais do que a voz do delegado, apesar de sua baixa estatura, dizendo:
- Sou Vento Solto! Venho de longe, estou de passagem para longe! Os nomes feios que pronunciei foram por causa de uns sujeitos aí, que insistiam em barrar a minha passagem colocando a perna na minha frente. Como não sou homem de recuar por qualquer obstáculo sem importância, enfrentei vossas excelências para revelar um segredo!
Wilson exclamou:
- Vixe!
Isto poderia significar várias coisas: cabra mentiroso; aí vem chumbo do grosso; o caldo entornou; quem é esse andarilho que parece chegar de onde o diabo perdeu as botas?
Em cada semblante estava estampado o ponto de interrogação. Quem é esse homem? De onde apareceu tal figura? Quem lhe deu corda para se meter em questões que não lhe dizem respeito?
Guerra já se impacientava. Até aquele momento não sabia o nome de quem roubara Merlim. Por isso não se podia opinar, muitas que se encontravam ali, onde mora o dito cujo. E agora mais essa: este tal de Vento Solto! Que nome mais parecido com nome de cangaceiro? Pensou Guerra.
Os comentários, novamente. Reacenderam por toda parte, feito fogo em mato seco. A missa sem importância e o sermão de padre Benedito Basílio Alves; Guerra como testemunha do Vigário e a decepção das três beatas; chega agora, a notícia da revelação por parte da cigana de quem roubara o bode Merlim e, para entornar o caldo, aquele baixinho cheio de prosopopéia.
O que falta acontecer em Verdejante?
Danta igualmente perplexo pelo atropelo de tantos acontecimentos não planejados, comentava com os amigos:
- Nossa cidade é do tamanho de um ovo. Mas parece uma cidade grande, a cada dia tem um movimento...
Wilson que era o mais idoso entre os três, ponderou:
- É uma fase. Daqui a algum tempo ninguém se lembra mais dessas coisas e Verdejante voltará a ser uma bela adormecida.
Guerra, mão no queixo, fechando um pouco os olhos como para enxergar bem longe, disse:
- Sei não. Tudo tem uma explicação, mas esse entojado que acaba de aparecer... Isso não me cheira bem...
O delegado Luiz Marchante, segurou o braço do recém-chegado, enquanto na outra mão sustentava o chapéu do panamá, argüiu:
- Sabe sujeito. Seja lá quem for você, vá logo vomitando o que tem aí dentro, vende logo o seu peixe e chispa da nossa cidade!
Até os ciganos, que interromperam todos os seus afazeres para observar tão custosa reunião, ficaram de ouvidos bem abertos para ouvirem o interpelado daquele momento.
Foi a vez de o prefeito ordenar:
- Isso! O delegado disse muito bem: fala! Nós estamos aqui no meio de uma conversa comunitária para deliberar sobre assunto de alto grau de periculosidade, vem você interromper! Fala e arriba, e rápido!
O andarilho retirou o chapéu de couro, pegou fumo já picado embrulhado em um pedaço de papel muito sebento, arquitetou, com agilidade invejável, um cigarro. Pegou de um pau de fósforo e o deslizou no solado das velhas botas acendendo-o. Isso causou sensação no meio da turba. Wilson exclamou:
- Vixe, o homem é mágico!
Aquele, fazendo com o chapéu uma espécie cobertura para que o vento não apagasse a chama do fósforo, acendeu com destreza o cigarro e, chupando-o com força, soltou um tufo de fumaça para cima que mais parecia chaminé de trem. Ficando no centro da roda de pessoas, alvo da atenção geral, assegurou que iria falar.
Todos os presentes, sem exceção, esticavam os respectivos pescoços, não pretendiam perder nenhuma cena de todos os atos daquele drama sem final.
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RESUMO: Agora sim, Verdejante tem assuntos para muitos dias. Mistérios por cima de mistérios. Que terá para dizer um homem desses? Vamos saber nos próximos capítulos. Por enquanto ficam os curiosos da história que está sendo contada e nós, aqui, leitores ávidos em saber as fofocas sobre os outros, nunca as nossas próprias fofocas. Mas o bom é isso: todos são felizes e, ao final, salvam-se todos. Aguardemos os capítulos vindouros.
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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos
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