Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
Por William Guerra*
CAPÍTULO XI
A noite foi longa, depois daquela revelação. Seria o senhor Vento Solto, confiável? Nada se podia fazer a não ser esperar. As rodas se formavam nas esquinas, nas calçadas, vizinhos trocando ideias e discutindo como se defender dos bandidos.
Na casa do Coronel Chico Pinto a noite toda um entra e sai de pessoas: parentes, amigos e agregados. Solidariedade. Apoio. Palavras de conforto. Enquanto isso Manoel Cosme, montado numa burra possante, já rumara à vizinha Caraúbas se encontrar com o Coronel para inteirar-lhe do sucedido.
Chico Pinto era líder político, não só deste município de Verdejante, mas de toda a região Oeste do Estado. Não é por acaso que o seu nome está sendo cogitado para ser o próximo presidente da Província. Ele tem o apoio do seu partido e de outros que vêem no Coronel Chico Pinto o homem ideal para comandar os destinos do Estado. Homem de negócios. Empresário e fazendeiro. Dono de vastas terras e de grande rebanho de gado. Sua palavra junto ao governo estadual é acatada com louvor. Seu prestígio vai além fronteiras, até na Paraíba e Ceará falam no mais influente homem político nordestino, que poderá ser o próximo chefe da sua Província.
Chico Pinto herdou o comando político local e regional do Coronel Ferreira Pinto. Portanto os Pinto são uma família de destaque na política estadual, atraindo invejosos o que, certamente, provocou a ciumeira nos adversários que querem eliminá-lo do cenário político. Por enquanto ninguém citou nomes. Há suspeitas, mas não se podem fazer prejulgamentos. Mas também é certo que haverá uma investigação para saber de onde vem a autorização para matá-lo. Sim porque existe um mandante. Os dois homens que contrataram Massilon não passam de paus mandados. Os ‘cabeças’ não aparecem nesses casos de mortes encomendadas. Se o atarracado cangaceiro estiver certo, algo muito grave está para acontecer em Verdejante. Alguém levantou a hipótese de ser mesmo fogo amigo, ou seja, os próprios aliados do Coronel querendo ver seu couro espichado, saindo de cena para que não seja um entrave a aspirações outras.
Padre Benedito Basílio Alves, diferentemente dos demais habitantes da cidade, ao invés de sair por aí a cochichar sobre o sucedido, recolheu-se à sua residência, melhor para pensar sobre o fato. Foi aí que se lembrou que a cigana lhe dissera que ele, o Vigário desta paróquia, iria ser personagem principal num grande acontecimento, que talvez fosse uma invasão de cangaceiros...! A última frase pensou alto, falando mesmo.
- Meu Deus! Que coincidência. Ou teriam os ciganos algo a ver com tudo aquilo?
Dizia isso sozinho, como se estivesse falando com as paredes. Mas absorto, nem percebeu quando um vulto penetrou no quarto e ficou de pé por trás da cadeira onde estava sentado. O farol aceso com a sua diminuta chama dançava dentro da manga de vidro, iluminando com dificuldade aquele refúgio do celibatário padre.
Rapidamente se voltou para trás, distinguindo a bela Mercês. Ela estava deslumbrante. Cabelos soltos, perfumada, rindo e apresentando dentes perfeitos. O servo de Deus também ficou de pé e dirigiu aos céus a seguinte súplica:
- Senhor, se for pecado amar, terei todos os pecados do mundo, mas não me acuse por tão bem-vinda tentação...!
Depois disso, como um toque de mágica, o farol se apagou. O escuro foi testemunha de suspiros e trocas de juras de amor, enquanto lá fora o povo ainda repercutia o segredo revelado por um deletério que se dizia chamar Vento Solto.
Já nem o sol aparecia direito, lá estava Danta no pé da porta da casa do amigo. Queria dizer uma coisa ao Guerra. Tinha o “fato furado”, isto é, qualquer assunto, por mais insignificante que seja, corre para participar ao amigo inseparável.
Carrinho abriu a enorme porta. Danta entrou, assim como um gato doméstico que passou a noite farreando e, amanhecendo, fica ali, na espreita, esperando que seu dono dê um espaço para voltar à rotina de felino do lar.
Guerra limpava as gaiolas. Recolocava água limpa nos recipientes bebedouros das aves. Danta ajudou na tarefa. Levou as gaiolas e pendurou-as no pé de cajarana. Guerra subiu na árvore amiga, foi pesquisar no seu cofre particular se faltava alguma coisa. Conferiu tudo. Nada de anormal. E virando-se para o amigo, perguntou:
- O que deu em você para madrugar aqui em casa hoje?
Danta já estava, também, em seu cantinho preferido entre os galhos floridos. Botou uma folha na boca, mastigando e cuspindo longe a saliva esverdeada pela ação do pigmento químico existente nas folhas das árvores, revelou seu segredo:
- Tenho um segredo. Não é daqueles que o homem de chapéu de couro contou, não. O meu é simples.
- Que segredo?
- Vou ser engraxate.
Guerra riu. Essa é boa. Pensou e devolveu o segredo do amigo:
- Já temos dois e é demais. Quase ninguém usa sapatos em Verdejante...
- Sei, o engraxate Tatim e aquele menino filho de seu Valério?
- Han, han...
- É eu soube que o Tatim vai embora para Fortaleza, abre uma vaga.
Guerra riu mais ainda. Que tonto.
- Como vai engraxar se você não tem uma caixa para colocar as coisas? Não tem graxa, nem escova, nem flanela, nem tinta branca e tinta preta e tinta marrom... Álcool... Nada?
Danta ficou pensando. Como daria um jeito para conseguir tudo aquilo? Se pedir ao seu pai este lhe manda estudar. Se for ao prefeito, este não acreditará na sua palavra, dirá que precisa falar com o seu pai que, por conseguinte, responderá que vai ter que estudar, não engraxar.
- É. É difícil.
Guerra deu o ultimato:
- Difícil uma ova. Impossível! E tem mais: você tem que primeiro praticar, aprender bem como polir para deixar os sapatos brilhando novinhos em folha.
- É. É difícil.
- Melhor a gente ir passarinhar. Os ciganos vão embora hoje. Verdejante vai ficar novamente vazia.
Danta ficou conformado, não iria mais insistir com esse negócio de querer ser engraxate, não.
- Vamos ao que interessa: passarinhar. Mas que é bonito ver um engraxate engraxando isso é.
Guerra não respondeu. Pegou o embornal, o colocou no ombro e desceu feito macaco pelo tronco da árvore. Danta também. Passaram pela cozinha, Socorro lhes deu pão e pedaços de rapadura. Foram até a casa de Danta que precisava pegar sua boladeira.
Entraram pelo Beco de Bino; foram pela ensombrada rua do funileiro; desceram na rua de trás. Na porta da residência de Pedro Bodegueiro, lá estava Pedrão limpando os olhos ainda remelentos. Ao avistar os dois meninos embocou casa adentro. Guerra e Danta perceberam e riram. Passaram em frente e Pedrão não deu as caras.
Saíram pelo corredor de Brel; deram uma passadinha na Matança, pararam: nenhuma novidade. Desceram pelas missões e chegaram a Dona Tiadora. Subiram no corredor que ia sair no Jatobá. Transpuseram a cerca no curral de Valdemiro e finalmente pararam na baixa da tamarineira.
O sol ainda era fraco àquela hora da manhã. Os dois amigos ficaram por ali, atirando em rolinhas; assustando cobras pretas - bichos inócuos; abelhas escondidas no alto das árvores e maribondos; derrubando frutos de carnaúba; ameaçando calangos que rastejavam por entre o mato ralo.
Sentaram à sombra da grande tamarineira. Danta puxou conversa:
- Você ainda vai se vingar do Pedrão?
Guerra não respondeu.
- Quem você acha que roubou o bode daquele circo?
O amigo nada respondeu. Continuou calado. Danta pensou: será que ele está preocupado com alguma coisa?
Mais uma vez insistiu em abrir uma conversa:
- Os cangaceiros invadindo Verdejante, a gente fica por aqui mesmo?
Guerra mudou de posição, sentado e recostado no tronco da árvore. Olhou para cima, viu que os primeiros frutos começavam a amadurecer, algumas vagens caíam à ação de ventanias. Olhou para o amigo e disse, respondendo às indagações do amigo:
- Primeiro não tenho intenção de me vingar do Pedrão, já passou. Segundo ninguém sabe, ainda, o nome do larápio que surrupiou o bode. E, finalmente, se é que aconteça mesmo essa invasão dos cangaceiros à Verdejante, os nossos pais saberão o que fazer.
Fez uma pausa, e sem dar chance para Danta argumentar qualquer coisa, continuou:
- Estou pensando aqui nos ciganos, no circo, no bode, nos cangaceiros, naquele homem que se chama Vento Solto, em Massilon, e, especialmente, no meu padrinho, Padre Benedito...
- Como assim, pensando?
Danta, imitando o amigo, igualmente mudou de posição, retirando umas folhas secas de um recanto e acomodou-se melhor, bem mais perto de Guerra, enquanto fazia a pergunta.
Geurra falou, pausadamente, com uma tristeza na voz que Danta quase não reconhece o amigo esperto e vibrante de todas as horas:
- O circo Maior de Todos foi embora sem Merlim, uma saudade danada bate no peito pelos dias de alegria que ele nos deu aqui, enquanto o dono do bode deve morrer de saudade do seu amigo, o bode que adivinhava; os ciganos, também, que já quase fazia parte do cenário urbano da nossa pequena cidade, arribaram repentinamente, deixam um vazio na população; o homem esquisito que veio ninguém sabe de onde, plantou o terror entre os políticos daqui; os cangaceiros são pessoas perversas, excluídos do nosso convívio social que nos causam medo; Massilon, homem terrível que só teme a Deus. E Padre Benedito, acusado de ser amante de Mercês, e esta amante dele, não tem escapatória.
Danta ficou admirado:
- Mas como você está falando bonito, parece um adulto? Mas que quer dizer com “padre Benedito não tem escapatória?”
Guerra ficou mais pensativo, quase fechando os olhos, continuou:
- Um homem solitário. Um ser humano. Que veio de longe para ajudar ao povo daqui. Não tem mais notícias dos seus familiares. Não tem filhos. Ninguém! Você não acha que ele deve se apegar a outra pessoa e conversar, confidenciar suas amarguras e, como é homem, amar também, igual a qualquer homem, já que esse outro alguém é a sua empregada?
- Bom, eu não entendo bem dessas coisas do coração, da alma, do corpo, nada... Mas eu tenho a impressão de que Mercês é a mulher dele, sim! Fala sobre esse negócio de escapatória?
Guerra prosseguiu:
- A cigana disse, eu ouvi que padre Benedito iria ser uma pessoa importante num acontecimento em Verdejante. Que o tal acontecimento seria uma invasão de cangaceiros. Compreende? Está para acontecer. Agora, o que o padre vai fazer? Isso é que eu queria descobrir antes. Entendeu agora?
Danta balançou a cabeça afirmativamente.
- Entendi. Quem sabe esse negócio de matar o Coronel Chico Pinto, não sobre para o Vigário? Ao invés deles matarem o político, matem o Pároco?
Ouviram uma Ben-ti-vi cantar, houvera pousado no galho mais alto do pé de tamarindo. Guerra, antes que a ave abrisse o bico outra vez, atirou com a sua baladeira. Não acertou, mas espantou a ben-ti-vi que voou para longe. Aquele pequeno entrevero veio tirar a tranqüilidade dos dois meninos, que, ficando ambos em prontidão de atirar novamente, saíram pelo meio do mato à cata de algum bicho para perseguir por pura diversão.
Depois de muitas voltas em torno sem conseguirem atingir objetivos de indomáveis perseguidores de passarinhos, voltaram ao ponto de partida. Sentados outra vez ao pé de tamarindo, com o sol já botando suas mangas de fora, esquentando de vez, Guerra puxou outro assunto. Aliás, esse seria o assunto que pretendia se ater com o amigo Danta.
- Meu irmão chega na próxima semana. Já se formou em professor.
Disse isso com tanta melancolia que Danta quase chora, não fosse a imediata reprovação pelo tom de voz tão triste:
- Espera aí Guerra. Tenha dó. Parece que nem está para chegar um irmão seu, mas um inimigo... Isso, não! João Guerra volta diplomado em professor é uma honra para você. Aliás, o primeiro professor verdejantense que se formou de verdade. Aqui nós temos Joaninha de Benvinda e o professor Batista que são quebra-galhos, não são formados.
Guerra ficou pensativo complementou, ainda com tristeza:
- Mas meu pai falou que quando ele chegasse, mandaria ele me ensinar as matérias relacionadas ao aprendizado, eu não quero aprender nada, quero continuar burro.
Danta deu uma gargalhada sonora, afugentando insetos, bichos e que tais pelo meio dos descampados e o que houvesse de vivo naquela mata.
- Então é isso, você está com medo de enfrentar o seu professor?
- É.
- Pois eu daria um milhão para aprender com um irmão que nem o seu. O danado é que não tenho um irmão formado. Meu irmão é mais rude do que eu, apesar de também ser mais velho.
A partir desse momento, ficaram calados, dois meninos tristes agora. O primeiro porque o irmão teria que fazê-lo aprender a ler, enquanto o segundo não tinha um irmão para a mesma coisa.
O sol subia, sem esperar por nada.
Não desabrochava um sorriso sequer na natureza. Ia o mês de dezembro começando, e nada; nenhuma lágrima derramada do céu; o sol refulge sempre; enquanto um juazeiro ao longe e dali avistado, verde perdido nas caatingas esqueléticas indicava um tom de heroísmo e raridade. O sertão estava seco. Por todo lado a nudez, sertão inóspito, quase negro, enquanto a mata onde se encontravam ainda resistia à inclemência da falta da água. Os dois garotos, acostumados àquelas cercanias, viam estender-se em ondulações desnudas, aquela terra apontada de mirrados capões.
Por aqui imperam moitas viçosas de muricy, guajiru, guabiraba e murta oferecendo seus frutos ao descaso de quem passa sem rumo; as juremas rachiticas ensombram - aí concentra-se o mistério da natureza - torceras de coroas-de-frade. Ah! Aqui é o sertão que, a despeito da Primavera e do Outono, possui somente duas estações: Inverno e Verão. Época de chuvas e a seca. Seis meses para cada lado.
As serras avultam. Subindo em qualquer monte, o olhar se alonga na planura, disperso na incoerência de remotas transformações geológicas, cuja flora parece uniforme, sem pormenorizações. No sopé das serras a vegetação é driádica, há mais seiva, talvez mais rica, enquanto os carnaubais margeiam os rios.
Pois bem, os dois meninos, apesar de semi-adolescentes, já entendiam isso: na seca vive-se dos recursos deixados pelo inverno, enquanto durantes os meses chuvosos colhe-se a fartura brotada nesta mesma terra de tantas contradições.
Guerra e Danta deixaram de lado a tristeza. Que viesse João Guerra, o Professor! Que chegasse logo o fim do ano, para ter início o bendito período das chuvas, das enxurradas, da melancia, do feijão novo, do milho, do algodão e da colheita.
Danta e Guerra eram tão ligados que agiam sobre a mesma coisa automaticamente, sem necessidade de comunicação verbal. Levantaram-se ao mesmo tempo e saíram caminhando devagar, de volta para o centro de Verdejante. Puxaram conversa, disse Danta:
- Depois de amanhã vai haver a invasão.
- E se for amanhã, mesmo?
Foi a observação do Guerra.
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RESUMO: A invasão de Massilon e seu bando vai acontecer amanhã! Antes da quinta-feira programada. Um Deus nos acuda. Padre Benedito, habilidoso e dotado de grande coragem, salva Chico Pinto dessa empreitada. A vida segue em Verdejante. Vamos saber quais as consequências daquela invasão. O que vai acontecer com o bandido Vento Solto? Guerra está apreensivo, João Batista Guerra, seu irmão chega diplomado em professor. Vamos acompanhar?
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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos
* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos
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