Morre Dom José Freire, bispo da
era de ouro da Igreja
Morre Dom José Freire de Oliveira Neto, 83 anos, o
segundo bispo filho da diocese, natural do município de Apodi, RN. Ele foi,
inicialmente, auxiliar de Dom Gentil Diniz Barreto, e, depois, nomeado pelo
papa, bispo da diocese de Mossoró. Governou a diocese durante 20
anos, de 14 de março de 1984 a 17 de outubro de 2004.
Dom Freire pertence à safra dos bispos de grandes
ideais, que marcou a era de ouro da Igreja no Brasil. Na diocese, ele foi o
bispo que escancarou as portas da Igreja para os leigos, criou as assembleias
de pastoral, o planejamento participativo, reacendeu as pastorais sociais. Ele
é da geração dos bispos militantes da Igreja Pós-Conciliar, tinha opções
eclesiais claras e causas nobres, ao lado de brilhantes figuras no episcopado,
como Aloísio Lorscheider, José Maria Pires, Hélder Camâra, Paulo Evaristo,
Eugênio Sales, Luciano Mendes e outros. O novo jeito de fazer e de
ser Igreja, a partir das inovações libertadoras dos documentos pós-conciliares,
alimentavam a esperança e o dinamismo pastoral dos bispos.
Naquela
época, 1984, ainda vivendo sob a ditadura militar, havia no episcopado
brasileiro, os bispos que optaram ficar do lado do povo, lutando pelo
resgate da democracia, por justiça social e pela liberdade de expressão. Dom
Freire era um deles.
Iniciou
seus estudos de padre no seminário de Santa
Teresinha em Mossoró, depois continuou no Seminário de São Leopoldo, RS, e,
concluiu com o mestrado em Ciências da Educação, com especialização em
catequese, pela Pontifícia Universidade Salesiana, em Roma.
Era
nostálgico e, ao mesmo tempo, divertido, escutar Dom Freire falando da sua bela
história vocacional. Várias vezes, no seminário Santa Teresinha, nós,
seminaristas, tivemos a oportunidade de escutá-lo: narrava com detalhes, desde
o dia em que chegou de trem em Mossoró pra entrar no seminário menor, suas
viagens de navio para São Leopoldo, sua relação de amizade com Sátiro e
Américo, que, na época, também eram seminaristas.
Estudando
na Europa, Dom Freire continuou fiel ao modelo
de Igreja das comunidades de base, povo de Deus. Vivia com o corpo na Europa e
cabeça na Igreja da América Latina. Motivado pela primavera inovadora que
vinha do recente Concílio Vaticano II, Dom Freire ousou escrever sobre
Catequese Renovada, que na época, causava um certo tremor e temor nos homens do
Vaticano.
Voltando
ao Brasil, foi referência nacional na área
catequética, proferia conferências nos regionais e dioceses de todo o
país. Foi um dos redatores do documento oficial nº 26, "Catequese
Renovada", da CNBB. Dom Hélder Câmara o estimava muito e o chamava
de bispo da catequese. Penso que, a catequese no Brasil,
especialmente no Regional Nordeste II, tem uma grande dívida com Dom Freire.
Cada um
pode descrever características que identificam o episcopado de Dom Freire. Eu,
também, tenho as minhas. Hoje, quando recordo a missa dominical das nove horas,
na Catedral, transmitida pela rural, rapidamente vem a imagem de Dom Freire.
Ainda criança, morando no sítio Bartolomeu, ouvia aquela voz: "meus irmãos
e irmãs presentes na catedral de Santa Luzia e ouvintes de casa".
Chegando
em Mossoró pra estudar, passei a entender
o porquê de algumas homilias do bispo terem um tom bastante social e profético.
Ele denunciava as injustiças, falava ousadamente do descaso administrativo da
secular oligarquia rosado; falava da corrupção que imperava/impera nos sistemas
públicos. Ele portava no início do seu episcopado a identidade de um
pastor, que carrega as dores e as angústias do povo, dos injustiçados, dos
preferidos do Reino. Nos últimos anos do seu episcopado, pouco a pouco, ele se
distanciou das questões ligadas aos problemas sociais, seu tom profético já não
era mais o mesmo. Não sei o que houve. Talvez tenha sido consequência da idade
e do peso do cajado. Pena.
Outra
característica determinante no episcopado de Dom
Freire foi o zelo pelas pastorais sociais: CEAPAC (Centro de Apoio a Projetos
Alternativos Comunitário), CPT (Comissão da Pastoral da Terra) Cáritas,
Pastoral da Criança, entre outras. Dom Freire entendia que, ser pastor em uma
realidade, onde a maioria vive à margem dos direitos humanos básicos, não
priorizar a pastoral social, seria como marginalizar na Igreja o próprio Jesus
Cristo, ou seja, relativizar o tão sonhado Reino de Deus, revelado por Jesus nas
Bem-Aventuranças de Mateus.
As
vocações sacerdotais também são uma característica
basilar no governo de Dom Freire. Ele dizia que "o seminário é
a menina dos olhos do bispo". Sou fruto da sua época. Tínhamos no
seminário, semanalmente, dois encontros sagrados com o bispo: na missa,
terça-feira, às 6 da manhã e no terço das quartas-feiras, às 7 da noite. O
pouco namorico que ainda tenho com Santa Teresinha é culpa de Dom Freire. Nunca
vi tanto amor por uma jovem santa, como aquele de Dom Freire com Teresinha de
Lisieux. Falava dela como que tivesse crescido e vivido, desde criança, ao seu
lado. Conhecia tudo, desde a cor dos sapatos que Teresinha usava, até os tipos
de transas que fazia no cabelo. Penso que toda Mossoró já ouviu, pelo menos uma
vez, Dom Freire falando, por exemplo, expressões como: "Santa Teresinha, a
doutora do amor" ou "Santa Teresinha dizia: quero passar o meu céu,
fazendo o bem sobre a terra".
Olhando
também os dois grandes amigos contemporâneos de Dom Freire, Mons.
Américo e Pe. Sátiro, conseguimos ver algo parecido. Se para Dom
Freire, o seu maior xodó era Santa Teresinha, para Mons Américo, era Santa
Luzia, e para Pe. Sátiro, São Francisco e Santa Clara, além de um afeto danado
com Santo Agostinho e São João da Cruz. Precisaria perguntar a Sátiro, quem
destes citados, ocupa o primeiro lugar.
Medo. Era a emoção que aflorava quando precisava conversar com Dom Freire.
Eu nunca tive um bom português e, perto de Dom Freire, pior ainda. Ele era
culto no clássico português. No seminário, quando havia reunião ou missa com
ele, corrigia publicamente nossos erros gramaticais. Então, ficar calado era a
melhor forma para não ser repreendido.
Todavia,
embora Dom Freire revelasse esse lado autoritário de ser, ele tinha também seu
lado humano e afetuoso. Era gostoso viajar com ele, visitá-lo em sua
casa. Saber escutar e compreensivo eram duas virtudes
que admirava em Dom Freire.
Hoje,
particularmente, agradeço ao Pai Criador por tudo o que Dom Freire fez por mim.
Fui acolhido por ele no seminário, foi quem me ordenou padre em São Miguel.
Logo após ser ordenado, mesmo sem experiência suficiente, ele me confiou
a responsabilidade de cuidar da formação dos seminaristas. Enfim, eterna
gratidão ao nosso bom Deus, pelo bem que Dom Freire fez à Igreja de Mossoró e à
sociedade em geral.
Descanse
em paz.
Mensagem a Dom Freire, escrita por Pe. Talvacy, a partir de algumas de suas memórias e vivências.
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