terça-feira, 6 de setembro de 2011

Romance de Domingo


Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
  Por William Guerra*


CAPÍTULO XXIV

         Chega o padre. Bem humorado prosa com todos e com cada um que ali se encontra. Ajoelha-se diante do sacrário, onde os fiéis dizem com fé que é a morada d Deus naquela Casa sagrada, e faz o sinal da cruz.
 
         Não percebeu, nem o padre e nem perceberam os demais daquela reunião, que três meninos espreitavam por trás de uma coluna, três meninos enxeridos querendo saber da conversa de adultos. Wilson, Danta e Guerra. Voltaram da lagoa. Passaram pela casa de Adrião Bezerra, Guerra perguntou a Vicência pelo avô. Esta lhe falou que ele fora à igreja.

         Entraram sem serem vistos e ficaram bem escondidos por trás de uma das gigantescas e largas colunas.

         O Vigário foi direto ao ponto:

         - Bem, pessoal! Estou aqui. Podem falar.

         Adrião Bezerra quis se adiantar e dizer alguma coisa. Foi cortado imediatamente por Tilde, o que resultou em um verdadeiro milagre, pois o assunto das três mulheres não coincidia com o seu assunto.

         Disse dona Tilde, prendendo fortemente o missal e o terço nas mãos:

         - Padre Benedito. Soubemos que o senhor quer celebrar uma missa na inauguração do Alambique?

         Risos. Descontração. Graças a Deus. Ainda não foi desta vez que o padre veste uma saia justa. O Cura da Paróquia de São João Batista e Nossa Senhora da Conceição suspirou aliviado. Respondeu com calma:

         - Primeiro não é verdade que vou celebrar uma missa pela inauguração do Alambique Malhada Vermelha! Segundo o povo é mesmo pródigo em inventar as coisas. Só falta eles dizerem que o padre Benedito vai fazer chover a qualquer momento!

         Os palestrantes daquela reunião ficaram admirados. Felizes pela saída honrosa do Vigário. Sabiam que ele seria incapaz de cometer um sacrilégio. Mas o padre continuou argumentando:

         - Bom. No dia 24 de dezembro, portanto. Celebrarei a missa do galo aqui na Paróquia. Vou à Passagem funda celebrar já depois da meia-noite também uma missa do galo e, ao amanhecer do dia 25, celebrarei uma missa igual na capela de Malhada Vermelha. E convido a todos a se fazerem presentes lá pelas 10h00, já em plena manhã daquele dia para inaugurarmos o maior empreendimento do município de Verdejante.!?

         Todos ficaram calados, entreolhando-se, como se aquele convite não fosse uma coisa correta. Adrião Bezerra, experiente e astuto, falou em nome de todos:

         - Muito bom. Uma mini-festa para a população daquela comunidade. Geração de emprego. Uma renda a mais nos cofres da igreja. Desenvolvimento para a nossa cidade...!

         Os demais, sem terem muito que falar, nem contestar a missa a ser celebrada na capela de Malhada Vermelha, não intencionalmente para inaugurar um Alambique, concordaram balançando as cabeças respectivas. Manoel Dantas, o sacristão, adiantando-se, disse que queria ser o primeiro a tomar a primeira dose saída da cabeça no mais novo Alambique do Estado, onde se fabricaria cachaça de primeira para vender nas redondezas. Padre Benedito Basílio Alves argumentou:

         - Não, Manoel! A primeira dose será ingerida pelo prefeito, Coronel Lucas Pinto. Ele prometeu estar presente na inauguração.

         Malhada Vermelha possuía um grande açude e, uma espécie de Vale ou terras propícias para a plantação e o cultivo de cana. O que já vem sendo feito há muito tempo. Dali que a matéria prima será retirada para a fabricação da aguardente. Os litros, ou vasiulhame (será vendida somente em litros) de vidro já estavam apostos para o engarrafamento com um rótulo apresentando uma cabeça de boi e os dizeres de praxe impressos. Essa parte foi confeccionada em tipografia da capital.

         Manoel Dantas não ficou triste e nem se deu por vencido, acrescentou:

         - Mas a segunda dose, podem a postar, serei eu a beber!

         Mais uma vez o Reverendo decepou pela raiz a vontade gulosa do sacristão:

         - Não, homem! Tenha tino! O Senhor Bispo vem para a inauguração e prometeu que seria ele a beber, numa taça de prata, a segunda dose, depois do prefeito, é claro, a dose em seguida...

         Aí o sacristão fechou a cara, mastigando as gengivas e rodando o olho de chaves no dedo, protestou:

         - Então que se dane a cachaça! De qualquer maneira vou tomar uma dose do cabeço e estamos conversados!

         Foi uma gargalhada sonora que contagiou os três garotos amigos que se encontravam detrás de uma coluna. Os meninos riram, mas Guerra fez um gesto levando o dedo aos lábios cerrados, pedindo silêncio aos companheiros.

         Adofina ainda fez a pergunta:

         - Quer dizer que o nosso Bispo da Diocese vem passar o Natal conosco?! Que alegria! Que bom! Que prestígio! E qual outra Autoridade mais vai para essa inauguração berber cachaça ainda quentinha da cabeça?

         Padre Benedito deu umas voltas com as mãos para trás, falando:

         - Todas as da nossa cidade. Outras de cidades vizinhas e a população inteira estão sendo convidadas a se fazer presente. Vai ser um dia histórico. Quero que todos vocês participem e saiam propagando por aí esse feito: a inauguração do Alambique de Malhada Vermelha que vai exportar cachaça para o país inteiro!

         Exagerou o padre empreendedor.

         Adrião Bezerra gostou do que ouviu. Ainda havia tempo para, noutra ocasião, solicitar das três beatas que combatessem os mexericos sobre a vida privada do Vigário que, a bem da verdade, era uma vida privada que em muito interessava aos fiéis e à toda a igreja.

         Houve os apertos de mãos. Abraços, até. Confraternização. Saiu cada qual para o seu lado: padre Benedito voltou à sua residência; Adrião Bezerra recoloca o chapéu de massa e segue rumo à sua casa; Manoel Dantas volta para os seus afazeres na sacristia, enquanto as beatas se benzem e se comprometem que voltarão à tarde para mais umas orações e saem as três cochichando e rindo, afinal ficaram felizes com a notícia de que o Senhor Bispo estará em verdejante no Natal deste ano.

         Guerra, Wilson e Dantas também, ainda se imiscuindo por entre a bancada principal e as colunas enormes, vão saindo de fininho, eufóricos. Eles também irão participar daquela solenidade. Têm que arranjar uma maneira de irem à Malhada Vermelha. Como poderia ser isso?

         Descendo o patamar, já chegando próximo ao Cruzeiro, Wilson falou:

         - Vamos nos pegar morcego na carroça de boi do Pedro Marinho! Ele deve ir com algumas pessoas ou transportar alguma coisa para lá. Tenho certeza!

         Danta contra-argumentou:

         - Não. Melhor a gente pedir aos nossos pais para nos levarem.

         Guerra ficou calado. Arquitetava um plano. De qualquer maneira seu irmão João batista irá. Deve contratar o caminhão de Joaquim Relaxado. Aí está a solução:

         - Vamos de caminhão, o do Joaquim Relaxado!

         - E seu irmão nos leva os três? Tem certeza?

         Indagou Wilson.

         - Não sei. Vou tentar falar com ele.

         - Comece logo a conversar sobre isso com João Batista. Não deixa para a última hora, não!

         Foi a observação de Danta, quando os três chegaram no meio da rua. Encaminharam-se à sombra de um pede-figo. Es estando assim batendo um papo descontraído, da cabeça?avistaram na janela do sobrado do dono do gado, avistara a figura de uma mulher. Cabelos desgrenhados, vestida de preto, mangas compridas. Danta alarmou:

         - Olhem para lá! É Dorotéia, coitada...! Parece uma alma do outro mundo!

         Realmente estava um trapo humano, somente. O que restou daquela jovem bonita, sonhadora e cheia de vida, apesar da rigidez com que fora criada. Isolada do mundo. Desde o fatídico dia em o sargento Bueno se suicidara que não colocava o pé fora de casa. Aliás nem saía do quarto. Mandara buscar livros onde era possível e lia. Lia sem parar. Mas, os meninos, naquela observação, viram um rapaz chegar perto da janela, bem abaixo de onde ela estava e tentava falar-lhe. Quem seria?

         Guerra reconheceu:

         - É Antonio de Luzia de Purana!

         Os dois outros companheiros também confirmaram. Antonio, para quem não sabe, era apaixonado por Dorotéia, mas ela nunca lhe deu esperança. E este jovem, depois daquele episódio, também dissera para sua família e os amigos que jamais casaria com outra, a não ser com a sua Dorotéia. Preferia morrer solteiro, mas com outra não se casaria! Ficava horas em frente àquele sobrado, vê se avistava o amor da sua vida. Sonhava com Dorotéia todas as noites. Fazia serenatas debaixo daquela mesma janela em noites de lua. Até o pai da moça reclusa tentara argumentar, agora que concordava com o namoro dos dois, ela dizia que não. Familiares e amigas procuraram demove-la daquela vida de freira. Nada a demovia da sua decisão. Morreria solitária em memória do sargento Buieno.

         Mas as pessoas podem mudar de idéia, quem sabe? Antonio de Luzia de Purana acenava para ela e falava com emoção:

         - Dorotéia, sai desse quarto. Volta para o mundo. Vem viver uma vida de felicidade. O que aconteceu foi vontade de Deus. O destino quis assim... Você não tem culpa de nada. Vamos conversar. Aceitar o meu amor?

         A jovem, parecendo ser centenária, pelo desprezo que dava a si mesma, olhava para cima, como a procura de uma imagem. O sol de quase meio-dia fazia com que ela protegesse a vista com a mão. Irredutível, nada dizia. Antonio, retirando um pequeno envelope do bolso, dentro havia uma mensagem, o jogou com força que caiu aos pés da moça. Pelo menos isso, ela o apanhou, entrou fechando a porta que dava para a varanda do sobrado. Aquele mesmo envelope que tantas vezes ele tentara entregar à Dorotéia. Por todos os meios. Uma esperança nascia no coração do jovem apaixonado.

         Os meninos viram toda a cena. Será que novo idílio amoroso renascia para aquela que o pai agrilhoara anteriormente, impedindo-á de casar com um simples e honesto militar? O amor do jovem Antonio a despertaria novamente para a vida? Parece que um novo sol nascia para os dois jovens. Ou não?

         Antonio saiu dali radiante. Quase saltando de alegria. Entrou pelo beco de João de Brito e foi comemorar o começo de sua aventura amorosa. Confiava em deus primeiramente e, a partir de agora, nas palavras que rabiscara num pedaço de papel cujo envelope conseguira entregar à sua grande paixão.

         Os três meninos amigos. Riram quando viram a felicidade do jovem Antonio. Parecia uma criança que acabara de ganhar um doce. Wilson observou com sagacidade:

         - Finalmente Dorotéia vai dá o troco ao velho Álvaro do gado...

         Os outros dois riram. Cada um dizia uma loa. Sairiam dali para dizerem para todo mundo ouvir: Antonio conquistara o coração de Dorotéia!  Isso na cabeça dos três, mas e na cabeça da jovem reclusa, o que se passava?

          Depois de pegar o envelope com a carta escrita pelo rapaz que lhe devotava uma paixão além do normal, entrou e trancou-se. Havia uma telha de vidro no teto. Iluminava bem aquele ambiente de solidão. Ela abriu o envelope e começou a ler a missiva do admirador incondicional:

          "Dorotéia, não a esqueço jamais. Todas as noites sonho com você. Penso em você todos os dias o dia inteiro. Sei que você teve um grande impacto na sua vida. Mas tem que esquecer. Eu farei com que apague completamente do seu pensamento esse recente passado. Dá-me uma chance, eu peço. Quero demonstrar o quanto sou louco por você e que o tamanho do meu amor é desconhecido. Responda-me, nem que seja dizendo um não. Fico orando e pedindo a Deus para que a resposta seja um sim".

         "Do seu amor verdadeiro: Antonio de Pádua Leite".

         Recolocou o papel escrito no envelope, que também trazia o desenho de um coração traspassado por uma flecha, levou-o ao peito. Fez um leve sinal riso. Ouviu baterem à porta. Ordenou que entrasse, estava aberta. Era sua mãe com um copo de leite morno.

         Sem que a mãe perceba, esconde a carta no vestido, entre os seios. E mais animada diz:

         - Mãe, por favor, manda engomar aquele vestido azul que a senhora mesma fez. Quero vesti-lo amanhã para a missa. É domingo...

         Sua mãe ficou estática. Sem acreditar no que ouvia. Levou as duas mãos às faces. Deu um abraço na filha e exclamou:

         - Deus ouviu minhas preces! Todos vão ficar felizes em saberem que você, finalmente vai sair dessa prisão! Nossa Senhora da Conceição é mesmo nossa protetora!

         Dorotéia foi até à penteadeira, pequena mesa com um grande espelho. Ficou a contemplar sua figura quase cadavérica. Ajeitou os cabelos para um lado, para o outro e solicitou à mãe:

         - Quero um banho caprichado. Alguém para me pentear com esmero. E hoje me trás bastante comida. Tudo a que tenho direito. A vida vai girar 190 graus para mim. A senhora vai ver!

         A mulher saiu do quarto quase saltitando, apesar da idade. Dando vivas. Ao descer a escada acenava para quem encontrasse. Até deu um beijo no rosto do marido que ficou bocó, não sabia o que estava acontecendo. Chegou à cozinha e deu as ordens à empregada/cozinheira:tudo do bom e do melhor para filha que renascia das cinzas!

         Depois voltou à sala da frente, Álvaro do gado sentado numa preguiçosa, mãos sobre a barriga já nem saliente. E contou-lhe o que ouvira da filha. Este também ficou animado. Veio lágrimas aos olhos. Arrependido pela ação desastrosa e criminosa que tivera para com a filha e aquele rapaz. Disse:

         - Pergunte a Dorotéia se ela me perdoa. Quero pagar meus pecados obedecendo a todos os seus pedidos.

         Sua mulher o consolou, dizendo:

        - Não meu marido. Fica tranquilo. Ela quer ir à missa manhã. E deve, primeiro conversar com o padre Benedito. Acho que ele a aconselhará a falar com você. Espera. Tenha paciência. O importante é que ela volte a viver, depois tudo se arruma.

        Os dois se abraçaram e chorara de felicidade. Como o mundo dá muitas voltas, quem sabe a filha não será ainda uma pessoa feliz?

        Enquanto isso Guerra, Danta e Wilson estavam diante da casa paroquial. Entraram sem avisar, a porta encontrava-se sempre aberta. Quase hora do almoço. Padre Benedito lia o breviário em lenta e murmurosa reza. Ao avistar o três, disse eom contentamento:

        - Sei, vieram me contar que prenderam Jesus?!

        Wilson também exclamou:

        - Vixe! Não! Outra novidade e muito boa, por sinal!

        O Vigário fechou o cenho, coçou o queixo e deixando o livro de horas de lado, perguntou:

        - O que há de bom, afinal, nesta nossa Verdejante repleta de acontecimentos tristes?

        Danta deu a metade da notícia:

        - É sobre Dorotéia, do sobrado... Ela apareceu na janela!

        O padre melhorou o semblante e, abrindo os braços, reperguntou:

        - E o que foi que aconteceu mais nessa bendita hora em que apareceu a nossa Dorotéia naquela janela?

        Foi a vez de Guerra complementar a resposta correta:

        - Antonio de Luzia de Purana conseguiu entregar uma carta a ela. O envelope foi jogado e caiu aos seus pés. Ela o pegou e entrou...

        O padre gostou do que ouviu. Afinal um milagre fora operado na sua Paróquia. Deus, até que em fim começava a olhar para Verdejante e seu povo humilde e sofrido. Tendo tirado Dorotéia daquela verdadeira prisão, apesar de voluntária, claro, mas era uma prisão, já alentava demais o seu coração de guia espiritual. Convidou os meninos para ficarem e almoçarem com ele. Agradeceram. Guerra disse-lhe que João Batista, seu irmão, esperava o Coronel Benedito Saldanha, amanhã, domingo, que era dia de feira. Disse isso em tom de informação, pelo que o padre agradeceu e também apreciou mais aquele sinal de que em Verdejante algo começava a mudar, até mesmo os ares politiqueiros...!
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RESUMO: A feira de Verdejante era aos domingos. Daqui a alguns anos deverá mudar-se para os sábados. Portanto, amanhã, domingo, Coronel Dito Saldanha e a missa que terá a presença de Dorotéia, a reclusa. Como o povo reagirá a esses dois acontecimentos?

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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.

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