Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra
Por William Guerra*
CAPÍTULO XXV
A noite chega depressa, não só nestes rincões perdidos do sertão nordestino brasileiro, mas em qualquer parte da terra, neste preciso momento, o recanto que fizer parte deste pólo. As estrelas começam a brilhar, imediatamente. Cálida fica, de repente, para que os seres que saem na escuridão possam trafegar. Pelas janelas entreabertas, pelas portas semi-abertas vê-se a luz fraca das lamparinas, dos faróis e das velas. Por detrás, pulando as cercas entrincheiradas trepidam teimosas labaredas querendo sair pelas bocas das chapas de ferro. O braseiro dá uma impressão de vida ardente, aquece o recinto e dali os que fumam cachimbo retiram o tição que o vai acender e fazer fumaça.
E na casa de Carrinho, ninguém fumava cachimbo, mas lá estava o fogão à lenha esquentando a chapa onde ficava a panela de barro com o café. Vez em quando Socorro socorria à panela para encher uma xícara de café que lhe pedia o professor João Batista.
Organizava os livros de atas do partido. Amanhã, domingo e dia de feira em Verdejante, o Coronel Dito Saldanha quereria revistar o material do diretório local. E João Batista não queria fazer feio. Tudo havia de estar bem organizado.
Outra coisa que o professor, irmão mais velho de Guerra tratava nos seus detalhes finais, era a papelada ou documentação para a inauguração da Sociedade de São Vicente. O receptor de rádio chegara em grande caixões e esperava-se somente o técnico aparecer que se instalaria e a Sociedade começaria a funcionar. Viera telegrama da capital cearense de que o respectivo técnico já saíra, estava a caminho.
O que João Batista fazia era a montagem de um comitê organizador da sua campanha, provavelmente, como candidato a prefeito de Verdejante. Não fazia parte de família tradicional política, mas tinha o apoio do chefe do partido na região, Coronel Dito Saldanha. Na cidade contava com a simpatia do padre Benedito Basílio Alves e mais outras pessoas que não simpatizavam com o Coronel Chico Pinto, chefe da situação, pois seu irmão, Lucas Pinto, detinha o comando do município, atual prefeito.
Do lado da oposição, os Liberais, um dos chefes de prestígio era o Coronel Luis Leite. Homem de posses e que gozava da amizade de Café Filho, deputado federal, futuro vice-presidente da República na chapa de Getúlio Vargas. Café Filho programara uma visita a alguns amigos no interior do Estado, em breve estaria passando por esta cidade e visitando o chefe e correligionário Luiz Leite.
De resto João batista tinha a simpatia do povo. Muito querido pela população. Seu nome despertava no seio da comunidade, principalmente na zona rural, onde estava a maioria dos eleitores. Chico Pinto e o irmão, Lucas Pinto, estavam vendo o negócio ficar meio difícil para o lado deles, tinham que agir imediatamente. O nome de João Batista, o professor, filho de Carrinho, tesoureiro da prefeitura, e futuro genro do farmacêutico Antonio Lopes Filho, crescia e era uma ameaça a hegemonia que tinha sobre o eleitorado de Verdejante há muitos anos.
Chico Pinto encontrava-se, também, neste instante em conversa com o irmão e mais alguns amigos.
- A coisa está perigando. O rapaz é traquejado e tem uma boa conversa. Esperto e ágil. Vai nos dar dor de cabeça.
Disse Lucas Pinto. Chico Pinto retrucou:
- É. A política é dinâmica. Hoje nós ganhamos, amanhã poderemos perder. Quero uma disputa limpa. Vejam o que estou dizendo!
Os que se encontravam ali, numa sala da residência de Lucas Pinto, entreolharam-se e um xereta ainda argumentou:
- Por que não enviamos à capital um artigo para o jornal União, falando sobre o Coronel Dito Saldanha, quem é, seus métodos, sua tirania, etc. e tal, maneira que mesmo não mexendo com o nome do professor, irá atrapalhar seus planos?
Todos concordaram, menos Chico Pinto, homem sincero, honesto.
- Não! Já disse que quero jogo limpo. Se for para usar os métodos ortodoxos do Coronel Saldanha, no mesmo diapasão, estou fora. Aliás, não permitirei traições. Entenderam?
Com isso a reunião foi desfeita. Articularam planos menos arrojados, mas o Coronel Lucas Pinto ficou com aquela idéia do amigo na cabeça: falar para o povo, pelo jornal, sobre a figura de mandão e prepotente de Dito Saldanha. Isso daria Certo? Veremos mais adiante.
João Batista avaliava suas chances num combate eleitoral com os Pinto. Sabia da dificuldade que enfrentaria. O desafio seria grande. Este clã herdara o poder e as rédeas do município pelas mãos do Patriarca da família, Coronel Ferreira Pinto. Este sim, tivera prestígio junto aos comandantes da Província. Sua influência estendia além fronteiras de Verdejante. Intuitivo e defensor ferrenho do partido de Pedro Velho. Este, vislumbrando qualquer sombra sobre os seus planos, convocava Ferreira Pinto para dizer o que fazer. Daí a sobrevida do partido de Pedro velho dever, em grande parte, a palavra e a ação de Ferreira Pinto em toda a região Oeste do estado, o que refletia nas demais regiões e nas camadas de políticos espalhados por toda parte.
Ferreira Pinto criava situações difíceis para os adversários, sendo nu alicerce na política vigorosa de Pedro Velho.
Antonio Ferreira Pinto, Coronel da Guarda Nacional e chefe político do município de Verdejante, sua terra natal, nasceu a 25 de maio de 1838, filho de Vicente Ferreira Pinto e D. Clara Cavalcanti.
Casou-se duas vezes: primeiramente com D. Maria Luiza de São Brás Beltrão, que faleceu cinco anos após o casamento. Pela segunda vez, Ferreira Pinto casou-se com Claudina Maria de Oliveira Neves. Foi comerciante desbravador, dono de propriedades e muito gado. Deputado estadual além de outras cargos renomados que exerceu em Verdejante e na Província.Inteligente bondoso, de espírito folgazão. Faleceu a 4 de agosto de 1909. Deixou 14 filhos e 51 netos. O grupo Escolar Ferreira Pinto foi construído e instalado em Verdejante em sua homenagem.
Daí a herança política dos atuais Pintos, que comandam os destinos de Verdejante há muitos anos. E João Batista, apesar de também descender do Coronel Ferreira Pinto, pois era filho de Nhá, conseqüentemente filha de Ernestina Guerra, filha de Maria Clara Pinto Guerra, filha do Coronel Ferreira Pinto.
Pode-se argumentar que em Verdejante, naquela época, uma família só fazia parte do cenário da cidade, todos descendentes deste Coronel Ferreira Pinto com mais uma ou outra figura que por cá aportava para tentar a vida.
O professor João Batista passava e repassava os livros, outros papeis importantes que poderiam ajudar amanhã na reunião. Avaliava cada detalhe, o que poderia sair do acontecimento que terá lugar à residência de Luis Leite, muito amigo do Coronel Dito Saldanha.
Enquanto a noite avançava, a meninada brincava em frente à casa do tesoureiro Carrinho. Alguém teve a idéia de pegarem andorinhas que dormiam nos beirais do telhado da Legião de Assistência e praticavam uma judiação com essas aves barulhentas e brincalhonas nas tardes de Verdejante.
Amarrava-se um cordão com pedaço de pano embebido em querosene às perninhas da ave. Tocavam fogo e a coitada sai voando sem rumo, numa aflição angustiante, tentando se livrar daquela tortura. Guerra foi quem chegou para defender as pobres andorinhas. Conseguiu soltar uma que quase morre queimada e ralhou com os companheiros.
- Isso não se faz! Vocês queriam ser atados a um pedaço de pano em chamas sem chances de se Defenderem?
Os demais garotos ficaram admirados com a defesa com que Guerra fazia da andorinha. Ainda houve um peralta atrevido, Chico Leite, com mais díade que os demais, comprido e magro, considerado pela turma toda de garotos como o menino mais traquinas do lugar.
Não gostou da intervenção do Guerra: defendendo as andorinhas:
- Quem é você para querer acabar com a nossa brincadeira? Você agora é metido a defensor das aves, dos animais? Admira muito, até outro dia você era o maior matador de rolinha da cidade!
Respondeu Guerra:
- Falou muito bem. Eu era. Não sou mais. Agora quem quiser maltratar um passarinho tem que ser escondido. Na minha frente não permito!
Houve um começo de confusão. Chico Leite tentou agredir Guerra. Este se defendeu. Os demais entraram no meio e apartaram os dois. De longe os pais dos garotos viram que se armava um circo para arengas, vieram uns dois e retiraram seus filhos e os que ficaram voltaram às pazes. Resolveram inventar outro brinquedo. Mas Danta, matreiro, convidou os amigos para sentarem na calçada da Legião e conversarem, contar estórias, ou dizer adivinhação. Chegaram a um acordo. Mas a conversa girou em torno da prisão de um tal de Jesus?
Wilson quem puxou esse assunto:
- Um rapaz bem moço, Não é de nossa cidade, não!
Um menino, por ali, por nome de Leôncio, comentou:
- Dizem que ele era do circo, cuidava do bode, mas foi mandado embora antes de virem a Verdejante. Aí se vingou roubando Merlim.
Guerra também fez a sua pergunta:
- Ele confessou alguma coisa?
Leôncio foi quem deu a resposta. Alias, parece que era quem mais entendia do assunto da prisão do Jesus.
- Ouvi dizer que ele confessou que roubou o bode, mas não foi ele quem matou o bicho.
- Vixe! Aí danou-se! E quem foi que matou o animal, um artista de pata cheia?
Observou Wilson, rindo pela sua metáfora. Não disse artista de mão cheia, imaginando que, pois muito bem, bode não tem mãos, tem patas. Os demais também riram daquela espécie de piada. Mais um garoto se meteu e inquiriu para quem quisesse responder:
- E de onde saiu Jesus?
Ninguém se atreveu a responder. Não sabiam o que dizer. Jesus é somente uma pessoa. Jesus e pronto. Veio do oco do mundo e se meteu em Verdejante e praticou esse crime. Deverá ser julgado pelo Juiz de paz nos próximos dias.
Danta rompeu o silêncio:
- No julgamento dele eu vou assistir.
- Eu também.
Falou Guerra. Os demais que se encontravam por ali disseram que não perderiam de jeito nenhum. O julgamento de Jesus deverá ser bem concorrido. Todo mundo quer saber quem é o personagem de onde veio, para onde vai, por que roubou o bode e, especialmente, quem o matou.
Leôncio ainda fez esta pergunta:
- Será que o dono de Merlim, os pessoal do circo Maior de Todos, ficou sabendo que prenderam quem deu sumiço no bode adivinho?
Novo silêncio. Ninguém sabia responder. Somente o delegado Luiz Marchante poderia dizer algo sobre isso. Mas Wilson tentou dar uma pista sobre o assunto:
- Ouvimos falar que o Maior de Todos está numa cidade da Paraíba. Parece que é São Bento do Brejo de Cruz, se não estou enganado.
Danta alertou:
- Sabendo onde o circo está logo vão mandar informar aos donos do bode. Tenho certeza.
Os garotos ainda passaram alguns instantes sentados ou deitados naquela calçada palestrando sobre bobagens, estórias de assombração, conversas de criança mesmo e adolescentes. Puxaram assunto sobre a puberdade, os que estavam engrossando a voz, os primeiros pelos, masturbação. Isso o que desperta nos jovens que vão vendo aparecerem as espinhas, o desejo pelo sexo oposto, o alumbramento que causa impacto na vida de cada um, o interesse pelo namoro. O estranho nisso tudo, em cidade pequena e do interior, é que essas conversas misturam jovem, adolescente e criança.
Guerra decidiu ir para casa. O sono chegou de repente. Abrindo a boca em bocejos, levantando-se disse aos demais:
- Vou dormir.
Dirigindo-se a Danta, falou:
- Amanhã eu vou à missa. Você via?
Danta respondeu que sim. Missa das oito.
Ao chegar a casa, Guerra encontrou o irmão ainda debruçado sobre os livros. João Batista o chamou e lhe disse que como ele, Guerra, já estava lendo bem e escrevendo, queria lhe oferecer de presente a gramática de Napoleão Mendes. Guerra pegou o livro e o apertou entre as mãos, rindo agradeceu ao irmão. Depois que lavou o rosto e os pés, pediu a bênçãos aos pais e foi deitar. Sua mãe ainda lhe trouxe um pedaço de beiju que Carrinho ganhara hoje, um seu amigo veio deixar um belo bolo de massa de mandioca que nós apelidamos de goma. Guerra comeu e tomou água. Deitou novamente na sua rede abraçado ao livro, adormeceu.
João Batista olhava para o irmão ressonando abraçado à gramática. Um bom sinal. Ficou assim vendo aquela cena de Guerra dormindo. Não teve dúvidas, o irmão mais novo seria uma pessoa de bons conhecimentos no futuro. Teria gosto pelos estudos e aquela gramática de Napoleão Mendes o ajudaria bastante. Depois, disse de si para consigo: não sou de ferro. Arrumou sobre a mesa a papelada. Levantou-se e pediu à mãe que tivesse cuidado naqueles livros e demais papéis. Eram para levá-los amanhã na renião do partido. Beijou a mãe e pediu a bênção ao pai, deitou e dormiu.
Nhá veio devagarinho e foi apagando as velas e as lamparinas, deixou somente um farol pendurado num armador a clarear a sala. Carrinho já adormecera também. Rezou o Credo e pediu a Deus proteção para os dois únicos filhos, mas custou a pegar no sono. Ouvia ao longe latidos de cães vadios. Assobios de notívagos perambulando pelas vielas desertas da cidade. De repente, tropel de cavalos em disparada. Teve um sobressalto. Apertou o peito. Que seria aquilo? Ficou tranquila, em siulêncio. Daqui a pouco novamente, cavalos correndo em disparada. Parecia uma perseguição. Passados alguns miunutos, tudo voltou à quitude da noite. Mas, preocupada, passou a noite em claro. Velando pelo sono do marido e os filhos. O que não lhe asía da cabeça era o som de cavalos correndo por duas vezes em frente à sua casa.
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* William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos autorias do pai.
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