Quando ainda estávamos em greve, o Ministério Público Estadual e o Federal enviaram para as escolas estaduais do Rio Grande do Norte a recomendação de que ninguém, além dos alunos, poderia comer a merenda servida na escola. O aviso foi reiterado após a volta às aulas, e representantes das DIREDs foram convocad@s para uma advertência oficial: diretores de escola onde o “delito” fosse cometido poderiam sofrer processo administrativo e criminal.
O assunto virou manchete nos principais jornais do estado e, em todas as matérias, há sempre um representante do Poder Executivo ou do Judiciário para nos atacar, chegando inclusive a nos acusar de roubo de merenda. Diante da “polêmica” e da super exposição, o sentimento nas escolas tem sido de constrangimento e indignação.
De fato, professores (as) e funcionári@s se alimentarem com a merenda faz parte da rotina da escola. E antes de nos tratarem como “infratores”, é preciso ver que essa realidade apoia-se na dimensão concreta de nossas vidas, e só existe pelas restrições a que estamos submetid@s.
Qualquer pessoa que viva além de gabinetes, apoiado na realidade, e não apenas em peças judiciais burocráticas, percebe imediatamente porque @s professores comem na escola. Como falei na Assembleia Legislativa no dia 10 de maio, nós precisamos trabalhar dois ou três horários para garantir o próprio sustento e o de nossas famílias.
Ora, se @ professor (a) passa o dia correndo de uma escola para outra, em transportes extremamente precários, pressupõe-se que ele (a) não dispõe de tempo para ir em casa fazer uma refeição entre um turno e outro. A verdade é que, em muitos casos, a refeição não é feita nem em casa, nem na rua. Afinal, quem é @ professor (a) que nunca “flagrou” um (a) colega “almoçando” um pastel ou uma coxinha dentro de um ônibus, a caminho de uma das escolas em que trabalha?
Diante dessa consideração, há quem possa perguntar: “então porque não levam comida de casa?” e a resposta é de natureza prática: é inviável e até desumano submeter profissionais que já andam carregados de livros, diários e trabalhos a serem corrigidos ou devolvidos, a carregarem mais duas ou três refeições dentro da bolsa por obediência a uma lei elaborada por pessoas que nem precisam levar marmita na bolsa, nem andar de ônibus. É absurdo exigir dest@s heróis e heroínas que, após toda a jornada de trabalho na rua, ainda consigam administrar o tempo em casa entre planejar, corrigir, elaborar provas, dar atenção aos filhos, cozinhar e ainda ter que preparar a marmita do dia seguinte.
Também é importante dizer que, mesmo com essa jornada, muit@s trabalhadores (as) em educação ainda não alcançam a proeza de garantir o sustento de suas famílias com o salário que recebem, razão que determina outra característica da nossa categoria: o endividamento.
Essa realidade, aliás, vivida não só por professores (as), mas pela maioria d@s trabalhadores (as) brasileir@s comprova o fato de que nenhum trabalhador(a) tem condições de gastar com comida na rua o dia todo, todos os dias, e ainda garantir que haja comida em casa para o restante da família. Diriam ainda os bajuladores cruéis: “tanta gente que vive com um salário mínimo...”. A resposta a essa piada de mau gosto eu prefiro dar não com palavras, mas com um minuto de silêncio em respeito aos trabalhadores que sobrevivem no Brasil com um salário mínimo.
Falsa polêmica
A recomendação do Ministério Público, na prática, humilha e ridiculariza @s profissionais da educação. Independentemente da intenção do Judiciário, tem sido um prato cheio para os governantes. Assim, eles miram os trabalhadores, tentando nos colocar no banco dos réus, tentando dividir a comunidade escolar, jogar uns contra os outros, quando, na verdade, no interior das escolas, não existe polêmica alguma no que se refere à distribuição da merenda. Ela sempre foi distribuída a tod@s os segmentos, e isso nunca impediu ou limitou o acesso d@s alun@s à refeição, tanto que eles(as) mesm@s são @s primeir@s a discordar da recomendação.
Com a “polêmica” aberta pelo Ministério Público temas realmente importantes são deixados de lado, envoltos em fumaça. O piso nacional dos professores, por exemplo. Enquanto se discute o tal “cuscuz alegado”, que cheguei a lembrar naquela audiência, deixa-se de lado a responsabilidade sobre os salários, condições de trabalho, investimentos, o debate sobre o PNE... É o que desejam governantes que não priorizam a educação, como Rosalba ou Micarla.
Naturalmente, o Ministério Público de cada estado poderia mandar cumprir imediatamente a Lei do Piso Nacional que, mesmo sancionada na esfera federal, vem sendo sistematicamente descumprida pela maioria dos estados e municípios. Aliás, foi exigindo o cumprimento dessa lei, que muitas greves foram feitas em todo o Brasil. Greves que, por sinal, foram julgadas abusivas pelo próprio Poder Judiciário.
Se o Ministério Público não se ocupasse com questões que, definitivamente, não interferem na qualidade da educação, teria tempo para se dedicar a outros temas. Por exemplo, o sem número de turmas que ficam meses e até chegam a concluir um ano letivo sem professores (as) de determinadas disciplinas. Porque o Ministério Público não exige d@s governantes que garantam professores para todas as turmas, evitando o prejuízo aos alun@s?
Também teria tempo para ordenar a restituição e o confisco das mansões e dos carros de luxo de tod@s aqueles (as) que desviam dinheiro da merenda para comprar uísque e ração de cachorro, como em Alagoas. Teria tempo para se preocupar com desvios da educação, da saúde, inclusive da deputada corrupta Jacqueline Roriz, absolvida por seus pares. Teria tempo para garantir que a desnutrição, e todas as doenças dela decorrentes, fossem apenas uma lembrança.
Suspeito que o Judiciário esteja muito distante da realidade da população. Basta ver os ministros do STF, que acabaram de enviar pedido de reajustes que levariam o salário de cada um para R$ 32 mil. Imaginem os restaurantes que eles frequentam...
Ao insistir em discutir se @ professor (a) ou @ funcionári@ estão comendo a merenda, o Judiciário escolhe o lado errado. Sua recomendação é impossível de ser cumprida, pois choca-se com uma realidade de salários de R$ 930, tripla jornada de trabalho, quilômetros percorridos a pé ou em transportes precários, e, por isso mesmo, tem tudo para ser ignorada, e virar letra morta. Entre o que está escrito no papel e a vida real, prevalece sempre a vida real. @s miseráveis a quem a Constituição assegura o direito a alimentação, atendimento médico, moradia e segurança que o digam!
Respeito e dignidade
Dentro desse debate muitas questões tem sido levantadas, mas a principal vem sendo ignorada. O Ministério Público alega estar fazendo o seu papel, garantindo que o que está escrito no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE seja cumprido. Em primeiro lugar, é necessário que façamos, mais uma vez, uma reflexão sobre a elaboração das nossas leis, programas, etc. e vejamos a que interesses eles atendem. Depois, é fundamental que tenhamos a consciência de que essas leis não são imutáveis, nem foram escritas por inspiração Divina, não admitindo questionamentos.
Não temos que empenhar esforços na busca por “atenuantes” para o nosso “delito”. Dizer que comemos restos, sobras, etc. só faz com que as sobras da nossa dignidade sejam jogadas de uma vez por todas na lata do lixo. A verdade sobre essa “polêmica” é uma só: se o PNAE apresenta uma visão distorcida, que considera que a escola é formada apenas pelos alunos, e não por alunos, professores (as) e funcionári@s, o erro está nele, e não em quem constrói o cotidianos das escolas.
A polêmica do cuscuz alegado é de natureza política e deve ser tratada como tal. Então, é necessário que @s deputad@s que, até agora, estão inertes diante de tamanho absurdo se posicionem, se manifestem. Se a lei está errada, cabe a eles consertá-la.
É justamente por ter a certeza de que não somos nós que estamos errad@s, que digo aos meus colegas que não se envergonhem nem se constranjam diante das acusações e ameaças. Mantenham a indignação e preparem-se para a luta. Não por um prato de comida, mas por dignidade, salário decente e condições de trabalho que abrangem, inclusive, o acesso a refeições na escola e, aliás, com qualidade bem superior à que temos hoje.
Às autoridades, peço que parem de difundir esse discurso demagógico de preocupação com a nutrição dos nossos alunos e a informação falaciosa de que a merenda servida aos trabalhadores (as) interfere na merenda servida a eles (as). Não pensem que conseguirão colocar os pais e noss@s alun@s contra nós, mesmo porque, em casa de pobre, o lema é: “onde come um, comem dois”. A vida aqui embaixo fala mais alto.
Fonte: Blog da Amanda Gurgel
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