domingo, 26 de junho de 2011

Romance de Domingo

Aventuras do Menino Danta e seu amigo Guerra


Capítulo VII



         Na ocasião do incidente, Padre Benedito Basílio Alves, olhava da janela do seu sobrado, ou casa paroquial, os garotos mexendo com o homem. Fez um ar de riso, até que gostou pelos dois terem sentido, uma vez na vida, uma chavascada, pois Danta aprontava e Guerra segurava as pontas, batendo, se intrigando com os outros e, aquela cena de apelidar Damião, o gari, não deveria se repetir, não na sua presença.
        
         Desceu a escada apressado, e foi ter com os dois que se lamentavam pelo acontecido. O agressor já ia longe.
        
         - Vejam bem o que vocês arranjaram!
        
        Guerra apenas arquitetava em sua cabeça um plano para pegar o “meu Louro”, ah se pego!
        
         Por sua vez, Danta choramingava, passando a mão nas costas, o local ainda ardia para valer.
        
        - E não vai ficar por isso não! Daqui uns dias, vocês vão apanhar na rua de meninos maiores; de Chiquinha Ferrão; de Bizinha, Pautila e Jacinta...!
        
        Enumerou alguns nomes de pessoas que eram, diariamente, alvo de apelidos, gozação por parte da meninada.
        
        - Prometam que não vão mais tirar cabimento com Damião, nem com ninguém, seja lá quem for!
        
        Danta assentiu com a cabeça, Guerra nem isso.
        
        O Vigário convidou os dois à casa paroquial, queria lhes mostrar algo. Nada não. Enganou-os, apenas com a intenção de aliviar o que sentiam e esquecerem a marca com que ficaram nas costas. Os garotos os acompanharam já agora curiosos para saberem do que se tratava. Que seria que o Padre lhes iria mostrar?
        
       Naquele momento Manoel Dantas chega para cumprimentar o Vigário. Mercês, a empregada da casa paroquial passou por eles, balançando as ancas, cabelos compridos que batiam abaixo da cintura, rindo e cantarolando ao mesmo tempo. Morena fogosa... Pensou o Sacristão, mastigando a gengivas encolhidas e rodopiando o molho de chaves no dedo.
        
        As más línguas diziam, pelos quatro cantos da cidade, que ela era a “burrinha do Padre Benedito”. Nova ainda, não namorava, e quase nem saía daquela residência. Havia aqueles que tinham certeza que a moça estava apaixonada pelo Cura da Paróquia. As beatas, então, achavam aquilo ridículo, um pecado mortal o Padre ter um caso com a própria empregada. Aliás, para elas, não deveria ter caso com nenhuma mulher. Mas eram fofocas. Os mais atrevidos asseveravam que, como “a voz do povo é a voz de Deus”.
        
       Danta e Guerra chegaram e acompanhando o Padre, subiram para o sótão. Penetraram no quarto meio desarrumado do Vigário. Chapéus, bolsas, malas, batinas, sapatos... Um grande alvoroço, não traduzia o zelo e a administração severa que tinha o Padre Benedito pela igreja. Exigia limpeza, asseio, arrumação. Cada objeto no seu devido lugar. Sem desperdício, bastante economia. Mas, no seu canto de dormir, ler, meditar, guardar os seus pertences, Deus meu, era um chafurdo só.
        
      Padre Benedito, pegando uma pequena caixa de madeira, retirou de dentro da mesma uma cédula de dinheiro no valor de $ 500 mil réis. Sentando-se numa cadeira de balanço, chamou os garotos e foi explicando:
        
      - Olhem meninos. Este dinheiro eu trouxe da minha última viagem a Recife. Aqui dá para comprar muita coisa. Percebam, deste lado desenhos e um rosto desconhecido, e no verso, está a figura ou malha de uma cobra cascavel. Não é maravilhosa?
        
      Guerra ficou extasiado parecia querer comer o dinheiro com os olhos. Danta, igualmente chegou bem pertinho e pediu ao Vigário para pegar naquela nota:
        
      - Podem pegar a vontade. Só peço que não divulguem por aí que guardo dinheiro de alto valor em casa. Combinado?
        
      - Sim.
        
     Disseram os meninos ao mesmo tempo.
        
      Levantando-se da cadeira, o Padre buscou um antigo farol que consistia num pavio embebido em querosene, protegido por uma âmbula de vidro, popularmente chamada de manga.Colocando-o sobre uma mesinha, a qual já se encontrava apinhada de objetos, apanhou uma caixa de fósforos e acendeu o pavio do farol, logo, o quarto que já estava na penumbra, ficou alumiado, e com essa claridade formavam-se figuras nas paredes. Eram as sombras projetadas diante da luz do velho e primitivo luminar.
        
         - Venham cá, meninos. Vejam quanta moeda...
        
       Os dois ficaram boquiabertos com tanta moeda dentro de um caixote de madeira. De todos os tamanhos: antigas e novas. Valores diversos. Isto é um tesouro! Foi o que veio à cabeça de Guerra. Mas, de repente, sem querer, Danta, ao mudar de lugar, atingiu sem de raspão em algo que se encontrava sobre a mesinha. O Padre, mais que diligente, apanhou o objeto do chão e suspirou: graças a Deus, está intacto...
        
       Era um porta-retratos e, nele, a foto de uma linda mulher. Olhos grandes, cabelos sobre os ombros... Feições jovens e atraentes. Um riso suave nos lábios.
        
      Curiosos, Danta e Guerra queriam saber quem era aquela mulher? O Vigário desabotoou a batina no alto do pescoço, retirou o clergyman branco, que o identificava como ordenado padre da santa Igreja Católica, contemplou o teto onde tremulavam algumas sombras geradas desde o farol amigo e começou a falar:
        
       - Minha mãe...
        
      Os garotos ficaram parados, sem pronunciar palavras, contemplando a cena: Padre Benedito Basílio Alves, que viera de longe, parou nessas cercanias remotas, puro sertão nordestino, com a intenção de salvar almas. Mas viram os meninos, que, de repente, aquele homem alto, forte, destemido e ágil, entristeceu, agora, naquele momento, parecia um vulto a mais na paisagem verde e cinza daquela cidade. Notaram um pouco de amargura no rosto esbelto do Vigário.
        
       Guerra tentou uma pergunta:
        
       - A mãe do senhor ainda vive?
        
      O Padre passou a mão direita, com a ponta da manga da batina, enxugou duas lágrimas. Não se fez de rogado, respondeu:
        
       - Não sei... Há muitos anos que não tenho notícias dos meus familiares.
        
        Danta, também fez a sua indagação:
        
          - Qual o nome de sua mãe?
        
          - Maria...
        
         Os dois amigos silenciaram a partir dali. Não desejavam torturar o Padre. Foram olhando cada objeto, cada detalhe daquele quarto. Apesar de Guerra sempre passar por ali, pois dormia num quarto vizinho cuja porta ficava aberta para dentro de onde dormia o seu padrinho, nunca tivera a curiosidade de remexer nos pertences do seu protetor. Hoje, porém, por ter sido convidado, tinha a impressão que era aquela a primeira vez.
        
         Emocionados, Guerra e Danta saíram, pé ante-pé, enquanto o Cura da paróquia, alheio aos dois, mirava o retrato já um pouco amarelado daquela mulher, Minha mãe não queria que eu me ordenasse Padre. Torcia pelo meu casamento com a Vitória. Meu pai forçou a barra, desconfiado... Dizia que eu não seria feliz me casando. Por quê?
        
        Seu pai já não era mais deste mundo. Carregara o segredo para o túmulo. Pois foi a pirraça e o argumento cheio de mistérios que fizeram com que Padre Benedito tivesse seguido vida religiosa.
        
       Ao despertar daquela viagem aos dias de jovem, em casa dos pais, o Vigário percebeu que os meninos já não eram mais com ele. Haviam sumido. Que pena. Guardava duas preciosas lembranças para presenteá-los. Nada não. Fica para outro dia. Disse em voz alta. Ouviu o cantarolar de Mercês, que caminhava pela casa carregando, de noite, uma lamparina que tremulava e soltava tênue fumaça escura, embriagava o ambiente com aquele odor de querosene queimado.
        
       Arrumou suas coisas, guardando bem guardada a fotografia de sua mãe, desceu a escada. Ao se deparar com a empregada, esta sorriu e respondeu a uma indagação sobre os garotos:
        
         - Foram-se, noite adentro.
        
         - Mas que coisa! Estava propenso a convidá-los a jantar conosco...
        
         - Agora é tarde. Inês é morta.
        
        Comentou a mulher, passando pelo Vigário e balançando os quartos num gingado insinuante.
        
        Guerra e Danta nem tomaram o destino de casa. Direto para a praça. Lá seus amigos já arquitetavam brincadeiras. A novidade era “o chicote queimado”. Consistia em esconder uma tira de sola, bem fornida, e, em seguida, o que a escondera ficava mirando os comparsas que a iam procurar e achá-la, dizendo:
        
        Está quente. Está frio.
        
        Isso quando algum menino chegava mais perto do local do esconderijo ou quando se afastava do mesmo.
        
       O que descobrisse o local da chibata, a pegaria e sairia a correr atrás dos demais, dando chicotadas naqueles menos espertos. Aí este fazia às vezes do esconde-esconde e tudo se repetia. Quando enjoavam da brincadeira, criavam outro atrativo. Assim a noite declinava e os pais os chamavam para lavar os pés e dormir.
        
       Mas, hoje, aconteceu algo inesperado.
        
       Pedrão, o menino do cabelo da cor de burro quando foge, apareceu. Mesmo na penumbra da noite de lua, dava para notar a cicatriz que ficara em sua testa, vestígio que Guerra deixou para sempre naquele menino. Os demais amigos até acharam que Guerra agiu certo. Para deixar de ser metido a besta! Comentavam.
        
      - Ih! Vai ter encrenca!
        
      Disse Danta. Guerra, que estava sentado sobre uma pedra, ficou de pé. Não queria dar chance ao adversário. Não fosse o inesperado algo que pode normalmente suceder, todos os garotos que se encontravam se divertindo ficaram estático com a atitude de Pedrão:
        
      - Guerra eu quero fazer as pazes com você.
        
      O neto de Adrião Bezerra não entendeu bem no primeiro momento. Conseguiu exclamar:
        
       - Quê?!
        
       - Não tem sentido inimizade entre nós. Besteira porque você mora numa rua e eu noutra, ficar com raiva, inimigo seu.
        
        Pedrão estava sendo sincero? Danta não entendia nada. Wilson conseguiu emitir um:
        
        - Vixe!
        
        - E a paulada na sua testa?
        
        Procurou saber o Guerra.
        
        - A culpa foi minha. Não guardo ressentimento. Até venho lhe pedir desculpas.
        
       Quem olhasse para a fisionomia de Danta, naquele exato momento, veria o seu queixo caído. Boca bem aberta e olhando fixamente Pedrão. Não acreditava. O que teria acontecido? Indagou a si mesmo.
        
       - Então, amigos?
        
      Pedrão estendeu a mão em direção a Guerra. Este, não a apertou, mas fez um gesto com os ombros, dizendo:
        
      - OK.
        
      Pedrão, chamando Danta em particular lhe confessou:
        
      - Com um cara que nem o Guerra, a gente tem é que ser amigo mesmo. Veja, a gente atirando uma pedra em direção a ele pega em você. Não se desgrudam. Acho bonito.
        
      Danta ficou desconfiado. Hum... Essa alma quer reza...
        
      Mas, passado o apaziguamento entre Pedrão e Guerra, a meninada retornou ao brinquedo. Chicote queimado. Pedrão integrou-se ao grupo. Ninguém percebeu, numa esquina meio escura, alguém espreitava, aguardando o momento de agir.
        
      Mudaram o brinquedo. Passaram a plantar bananeira. Vê quem se equilibra de cabeça para baixo por mais tempo. Não dava outro, Guerra ganhava sempre. Quando corriam, em disparada, para saber qual o mais veloz, era Guerra o vencedor. Jogos de castanha, ele sempre a ganhar o maior número de castanhas. Jogar bola, peteca, soltar papagaio, sem nenhuma sombra de dúvidas, era o maior em tudo, o mais sagaz, o ás!
        
         Estavam assim, felizes a rirem e jogando terra uns nos outros, quando apareceu feito visagem, um garoto companheiro de Pedrão, da rua de Trás. Sem maiores rodeios, foi de encontro a Pedrão, empurrando-o, xingando-o, puxando briga de verdade. Ou seria pura encenação? Danta percebeu que era fingimento, mas não teve como explicar ao amigo Guerra que aquilo não passava de uma armação.
        
        - Que é que você quer Santos, quer brigar comigo? Que foi que lhe fiz?
        
        Dizia Pedrão, todo inocente. O Santos replicava:
        
        - Ontem você roubou umas notas de papel de cigarro da minha caixa de sapatos. Eu vi. Agora quero de volta meu dinheiro de papel ou lhe abarco com este pau!
        
        Santos era um meninão forte, vizinho do Pedrão, trazia uma metade de uma vara retirada de alguma cerca ali pero. Os demais não perceberam nada errado com a arma de Santos, mas parecia que a maioria da meninada notara algo estranho naquela inopinada briga. Danta, este já estava convencido de que a desordem não passava de um embuste, olhou fixamente para o pedaço de vara na mão do Santos, descobriu tudo. Tarde demais.
        
       Disse, simulando raiva, o Pedrão:
        
       - Você só está com essa coragem toda porque está com um pedaço de pau na mão. Entregue ao Guerra isso aí, que você vai vê o que é bom para tosse!
        
       O cúmplice na tramóia respondeu:
        
       - Está bem. Pega Guerra, eu vou brigar com ele no braço mesmo.
        
       Guerra pegou a metade da vara, Santos, imediatamente puxou aquele fragmento e, logo, a mão do Guerra ficou melada. Algo pegajoso e fedido. A vara estava untada com fezes. Foi um Deus nos acuda. Gargalha. Pedrão bolava pelo chão dando risada que lhe provocava dor na barriga. Danta ficou indignado. E Guerra, quando se deu conta da trapaça, partiu feito uma fera para cima do Santos.
        
        Wilson gritou alto:
        
        - Vixe!!!
        
        Os dois meninos enrolados pela areia trocando socos e puxões de cabelo chamaram a atenção de pessoas pelas calçadas. Guerra pegou de jeito no braço do oponente com os dentes. Santos gritava de dor. Ao conseguirem apartar os brigões, viram que Guerra cuspia longe uma fatia de carne que arrancara do braço de Santos. Limpou a boca manchada de sangue. Levaram o ferido, que chorava, ao farmacêutico fazer um curativo.
        
        Mas Guerra não estava satisfeito, ainda. Procurou por Pedrão, não encontrou. Foi até sua casa e areou as mãos com sabão.
        
       Os amigos de brincadeiras infantis asseveravam com desdém: Pedrão vingou-se do Guerra. Mas quem saiu perdendo foi Santos.
        
        Esse acontecimento não chamou muito a atenção do povo. Acostumados com as danações do Guerra, nem deram por ela. Bem feito para Santos, por que foi enfezar o outro?
        
       Todos se recolheram às suas residências. Mais tarde, Verdejante dormia. Latidos de cachorros vadios. O vento batia de chofre nos pés-de-figo-benjamim cuja corruptela era “pés de figo”. Em sua tipóia, Guerra não dormia. De olhos arregalados, contemplava o telhado disforme de sua casa. Noutro cômodo, uma velha lamparina dançava com seu facho que teimava em subir, mas sempre se transformava numa fumaça negra que enodoava a parede já tão enodoada. Guerra ouvia, lá fora, o som das antigas árvores com a fúria da ventania, enrolava-se num lençol... Apavorado, medo do Labatut.
        
        Nem se reconhecia naquele menino o que vencia seus oponentes, feito gladiador numa arena romana.



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RESUMO: O bicho vai pegar na igreja, o sermão de padre Benedito contra as fofocas das três beatas. Guerra é, novamente, o centro das atenções naquela missa de domingo. Até que finalmente descobrem, através da cartomante cigana, o nome de quem roubara o bode Merlim. Será que é o fim do mistério do sumiço do bode artista do circo Maior de Todos? Vamos conferir nos próximos capítulos.


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 * William Lopes Guerra é advogado, pesquisador e escritor em Apodi, herdeiro dos direitos da obra de seu pai, Walter de Brito Guerra.

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